domingo, 1 de dezembro de 2013

O Andarilho


Parte final do quinto capítulo

Depois que saí da porta do seu sítio, ontem, já era tarde. Não tinha para onde ir. Andei mais um pouco pela estrada e encontrei uma casa velha abandonada. Resolvi passar a noite lá.
– E não comeste nada? – interrompeu o homem revelando, além de remorso, arrependimento por ter-lhe negado comida.
– Lá também tinha uma mangueira... Água, tomei da chuva.
– E como me achaste?
– Já vinha de volta pela estrada quando ouvi seus gritos. Passei por uma brecha da cerca. O resto o senhor já sabe.
O homem ficou pensativo. Voltou o olhar para o céu nublado, pois ainda chovia. Não disse mais nenhuma uma palavra até que chegaram ao hospital da cidade.
O menino estacionou a carroça. Pediu ajuda. Dois homens transportaram de maca o acidentado. Levaram-no até a sala de atendimento de emergências. Em pouco tempo um médico aproximou-se e o examinou cuidadosamente. Tentando um contato mais gentil com aquele paciente, inquiriu:
– O senhor não mora depois da curva da velha estrada, em um sítio? Falam muitas coisas do senhor aqui na cidade.
O homem, laconicamente respondeu:
– Moro.
O médico percebeu que seu paciente não queria conversa, mas prosseguiu:
– O senhor vai ter que ficar internado por uns dias. Está com uma fratura do fêmur. Terá que ser operado o quanto antes. É só fazer alguns exames para marcar a cirurgia – e completou: por enquanto vou providenciar sua remoção para uma enfermaria, além roupas secas para que não pegue uma pneumonia.
O velho paciente olhou para suas pernas e tentou mover uma delas. A dor impediu qualquer movimento. Voltou-se para o doutor e argumentou:
– Não quero ir para nenhuma enfermaria. Quero um lugar no qual fique só. Posso pagar por isso.
O médico, olhando as condições das roupas que o paciente vestia, tentou explicar:
– Senhor, se for para apartamento, o SUS não cobrirá as despesas dos remédios, da cirurgia e tudo o mais. O senhor pagaria por um atendimento que teria de graça. Será uma despesa grande, desnecessária.
– Doutor, posso comprar seu hospital, se quiser. Não se iluda com minha aparência. Outra coisa: onde está o menino que me trouxe até aqui?
O médico sorriu desacreditando nas palavras de seu paciente. Respondeu em tom de brincadeira:
– Não se aborreça meu amigo, mas todo dinheiro que circula por esta pequena cidade não seria suficiente para comprar este hospital, até porque gosto dele. Não o estou vendendo. Herdei de meu pai. Quanto ao menino, mandei que lhe dessem roupa limpa e seca. Está no refeitório com uma enfermeira amiga.
O homem fixou os olhos no doutor por uns momentos. Ajeitando-se na maca, disse:
– O senhor não é o Alberto, filho do Dr. Malaquias? Saiba que ele foi meu amigo. Ajudei-o a construir este hospital. Faz muito tempo, é verdade. O senhor, doutor, ainda mamava nos peitos de dona Regina, sua mãe.
O médico, atônito, viu que aquele homem estava falando a verdade; antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o ancião continuou a falar:
– Doutor, ligue para o João Maria, gerente do banco. Peça-lhe que venha até aqui comigo.
Tão surpreso ficou o jovem médico que deixou escapar um breve sorriso. Afastou-se sem dizer mais nada. Foi providenciar o internamento.
Depois de algum tempo, vestindo roupa do hospital, o menino aproximou-se do leito no qual repousava o velho homem. Segurou-o em uma de suas mãos. Com amor filial falou:
– Senhor, este quarto é muito bonito. Tem até banheiro dentro... parece que o senhor vai ficar sozinho aqui. Não tem outra cama, só a sua e este sofá.
O velho sorriu pela primeira vez desde que conhecera o garoto. Puxou-o mais para perto de si. Confidenciou-lhe baixinho:
– Quero te pedir desculpas por ter sido mau contigo. Pensei que fosses um daqueles moleques que me perturbam no sítio. Quando sair daqui, quero que passes uns dias em casa comigo.
Agora, quem sorriu foi a criança que agradeceu:
– Nunca fiquei com raiva do senhor. Não tem porque desculpar-se. Quando o senhor voltar para sua casa irei visitá-lo, sem dúvida.
Dizendo isso o menino afastou-se. Deixou-o só no apartamento do hospital.
Os dias se passaram. O velho homem foi operado. No dia da alta hospitalar, o Dr. Alberto recomendou:
– Procure andar o mínimo possível para não forçar a perna. O ideal é que o senhor tenha durante algum tempo alguém para lhe ajudar nas tarefas do dia-a-dia – e completou: sei que o senhor mora só.
No mesmo instante o paciente retrucou:
– Doutor, o senhor viu o garoto que me trouxe para o hospital?
– Apenas o vi no dia da sua operação. É seu parente? Quando lhe disse que sua cirurgia foi difícil, que deu muito trabalho tanto para mim quanto para o anestesiologista, ele sorriu. Disse que já sabia que tudo daria certo, pois havia orado para seu pai, que é Deus que está no céu.
O velho, coçando a barba que estava por fazer, inquiriu:
– O senhor sabe para onde ele foi? Ou onde mora?
– Ninguém neste hospital sabe nada a respeito desse garoto. Todos aqui gostaram dele, mas ninguém o conhecia antes. A última coisa que soubemos é que veio devolver a roupa do hospital que lhe emprestamos e que se afastou guiando a carroça na qual lhe trouxe para cá.
Uma ambulância levou o velho homem e uma enfermeira, contratada que fora para acompanha-lo nos dias que fossem necessários até sua total recuperação. Depois da curva da velha e poeirenta estrada avistaram a porteira do sítio.
Em uma cadeira de rodas o velho pôde contemplar sua velha casa. Tudo estava como antes, inclusive a velha carroça no alpendre. O cavalo no curral. E para surpresa agradável verificou que tanto as galinhas como os porcos haviam sido alimentados todos nos dias, em sua ausência.
O velho dirigiu a voz à enfermeira que lhe empurrava a cadeira de rodas:
– Se um dia batesses em minha porta pedindo comida e água e eu te expulsasse ameaçando te bater com um cajado, e logo no outro dia eu precisasse de ti, tu me virarias as costas ou me ajudarias sem pedir nada em troca?
A enfermeira sorriu ironicamente sem nada entender. Respondeu com outra pergunta:
– O senhor acha que eu estaria aqui se não fosse pelo dinheiro que já me pagou adiantado?
O velho homem não se constrangeu com a sinceridade da enfermeira; comentou:
– Acho que nós dois precisamos conhecer Jesus.
Os dias se passaram. O ancião voltou a andar com apoio do antigo e companheiro cajado.
O silêncio naquele sítio só era quebrado pelo cantar dos pássaros ou pelo grunhir dos porcos pedindo comida. De vez em quando o velho homem se surpreendia olhando fixamente para a porteira.
Era cedo. O velho acabara de jogar uma cuia de milho para as galinhas quando ouviu, ao longe, a voz que estava esperando desde que saíra do hospital:
– Oh de casa!
Nesse mesmo momento a mangueira derrubou seu fruto bem aos pés do velho. Ele juntou a manga, limpou-a na barra da camisa. Dirigiu-se apressadamente em direção à porteira.
Abriu-a. Recebeu o menino com um abraço apertado.
Os dois caminharam até a sala da casa. Antes que o menino falasse algo o velho perguntou:
– Queres um pouco de café? Fiz agorinha mesmo. Também tem tapioca... ainda está quentinha no fogão da cozinha.
O menino, sorrindo, agradeceu:
– Hoje não estou com fome. Bem cedinho, um homem me deu café quando eu estava na feira da cidade.
Instintivamente o garoto olhou para o retrato pendurado na parede. Olhou em seguida para o homem que com esforço ajeitava-se em uma desgastada poltrona. O velho, percebendo a curiosidade que se estampara naquela pequena face, resolveu contar-lhe sua história:
“Esta casa já foi a mais imponente destas redondezas. Era uma casa alegre, rica, muito frequentada. Vivia cheia de amigos. Eu possuía indústrias, muitos negócios na cidade, inclusive o banco. Tinha tudo que queria, mas, para te falar a verdade, não era feliz. Sentia sempre que me faltava algo que nunca soube explicar.
Um dia, já escurecendo quando cheguei do trabalho, encontrei minha mulher agonizando no chão do alpendre. Meu filho, ainda pequeno, já estava morto. Nunca soube quem fez essa maldade.
Vendi indústrias, negócios, o banco e apliquei todo dinheiro. Fiquei por aqui motivado apenas por um sentimento de vingança. O tempo passou. Continuo devendo para minha mulher e filho, a vida de seus assassinos.”
O garoto manteve-se atento em silêncio; não ousava interrompê-lo. Continuava ouvindo a narrativa:
“Perdi o gosto pela vida. Resolvi viver só com minhas lembranças. Não recebi mais ninguém em casa. És o primeiro que entras nesta sala depois de tantos anos.”
– Senhor – disse o garoto –, o senhor falou que sentia falta de algo, que não era feliz de verdade, mesmo quando sua esposa e filho eram vivos. Já pensou em procurar agora o que lhe falta desde há muito tempo?
O homem não entendeu as palavras do menino e perguntou:
– Por que não me contas agora um pouco de tua vida? Quem te ensinou a ajudar aqueles que te maltratam? Onde aprendeste a ser amigo daqueles que te negaram até comida?
O garoto sorriu. Repetiu uma pergunta que já havia feito algum tempo atrás:
– O senhor já ouviu falar de Jesus? Ele nos ensina tudo isso. Foi Ele que nos ensinou a perdoar, morrendo na cruz do calvário. Quando se tem Jesus no coração, temos perdão para oferecer. Somos felizes, realmente.
– Onde aprendeste essas coisas sobre Jesus? Quem te ensinou?
– Meu pai que está no céu me ensinou. Todos podem aprender isso estudando a palavra de Deus. O senhor tem uma Bíblia? 
– Um dia minha mulher me deu uma. Está guardada por aqui em algum lugar. Nunca a abri. Deve estar em um baú por aí. Qualquer hora dessas, eu acho.
– Ela lia a Bíblia? Sim, lia, mas isso não a salvou de seus assassinos.
O menino completou:
– A Palavra de Deus nos livra da morte eterna. Nos ensina o caminho da salvação, nos mostra o algo mais que falta para realmente sermos felizes.
O homem ficou pensativo tentando assimilar aquelas palavras.
Os dois ainda conversaram por um bom tempo até que o menino se aproximou da porta, despediu-se e saiu rumo à estrada. Disse que um dia voltaria.
O homem levantou-se da poltrona, foi até um antigo guarda-roupas. Na parte de baixo, abriu uma velha gaveta. Segurou nas mãos trêmulas uma Bíblia empoeirada. Abriu-a. Pela primeira vez leu a dedicatória:
“Querido esposo, se algum dia leres a Palavra de Deus, esquecerás tuas dores, frustrações, ansiedades, e aprenderás que o perdão nos aproxima de Deus. Só assim poderemos ser felizes de verdade.”
Uma lágrima percorreu aquele rosto sofrido. Desenhou-se-lhe a seguir um sorriso; caminhou em direção à janela, sentou-se em outra cadeira e na presença da luz do sol, que iluminava o ambiente, abriu o Livro Sagrado. Começou a mais proveitosa leitura de sua vida.
Ajorge

ajorgefs@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário