domingo, 29 de dezembro de 2013

A Bíblia


O Andarilho
Capítulo final
A Bíblia

         Anoitece.
Em uma pequena igreja, no fim de uma rua pouco movimentada, ouve-se um cântico de louvor a Deus. Um hino suave de adoração.
         As poucas lâmpadas dos postes públicos, que tentam iluminar a rua, conseguem emprestar ao ambiente apenas uma penumbra soturna.
         Do pequeno templo, a luz gerada, como que abraçada ao louvor reinante, atravessa as janelas e se projeta aos céus.
         A noite se adianta nas horas. O culto termina. Em grupos, os fiéis pouco a pouco buscam seus lares.
         Um jovem, segurando nas mãos uma Bíblia, ao dobrar uma esquina é abordado por um marginal:
         – Fica quieto aí, meu chapa. Passa a grana.
         O rapaz parou assustado. Abraçou-se ao livro sagrado. Em silêncio, olhou para o meliante. Sentiu um frio repentino no corpo seguido de um suor gelado que lhe brotava da testa.
         O bandido insistiu:
         – Não tenho toda noite para ficar aqui contigo. Passa logo a grana, pateta.
         O rapaz olhou mais uma vez para o assaltante. Percebeu seus olhos avermelhados brilhando, mesmo naquela penumbra. Os cabelos, escorridos em tranças mescladas com algumas miçangas coloridas, desciam-lhe até os ombros. A pele clara do rosto, marcada por espinhas, realçava a barba negra e rala por fazer. Nas mãos, com uma tatuagem multicor em forma de dragão, sustentava uma arma que refletia a pouca luz do lugar.
         Com esforço o rapaz falou:
         – Não tenho dinheiro, moço, nem para o ônibus.
         – Escuta aqui, meu chapa, se pensas que me enganas, estás frito. Se não tiveres grana vais morrer. Já viste alguém morrendo?
         O rapaz, sentindo o hálito de cachaça quando o bandido falou encostando a arma em seu rosto, insistiu:
         – Não estou enganando. Não tenho dinheiro nen-hum . A única coisa que tenho é minha bíblia.
         – Achas que sou otário para me contentar com uma bíblia? Quero grana.
         O rapaz ficou em silêncio por mais um momento. Com muito receio falou:
         – A paz que eu sinto na minha vida, é porque sigo a Palavra de Deus. Não porque tenha dinheiro. A bíblia é a Palavra de Deus. Levo uma vida modesta com minha mãe.
         O assaltante, enraivecido, gritou descontrolado:
         – Eu te avisei... não sou otário...
         E, olhando nos olhos do rapaz, disparou a arma duas vezes contra seu peito. Antes que fugisse abaixou-se, juntou a bíblia. Jogando-a sobre o corpo inerte do rapaz, debochou:
         – Leva a Palavra do teu Deus contigo.
         Um menino de aparência franzina, cabelos negros, pele clara, que passava naquele momento e que presenciara o fato, aproximou-se do corpo caído. Ajoelhou-se ao lado. Fitou-lhe nos olhos e procurou ouvir algumas palavras que foram balbuciadas:
         – Por favor, entregue esta bíblia para minha mãe. Diga-lhe que a amo muito.
         O menino percebeu que a luz daqueles olhos se apagaram. Tomou nas mãos o Livro Santo. Lentamente, afastou-se.
         No canto de uma sala modesta, sentada em uma velha e desgastada cadeira de balanço, uma senhora, aparentando setenta anos de idade, fazia tricô.
         Seus cabelos brancos, enrolados displicentemente no alto da cabeça, o rosto sulcado pela vida, os óculos amarrados com barbante vermelho sustentando a haste de apoio, exibiam a situação de modéstia em que vivia.
         Atraída pelas palmas batidas à sua porta, desviou os olhos do pano que tecia. Deparou com um menino, de pé, segurando uma bíblia nas mãos.
         Olhou-o detalhadamente. De maneira gentil, falou:
         – Entre, meu filho, a porta está aberta. Que você quer?
         O menino percebeu bondade naquele rosto triste, que sombreado momentaneamente por uma réstia de luz, atravessava, furtiva, a janela entreaberta às suas costas.
         – Bom-dia – exclamou enquanto se aproximava da velha senhora –,vim trazer-lhe esta bíblia.
         A mulher empalideceu. Esperou que ele chegasse mais perto. Num gesto repentino, quase que arrancou o livro das mãos do garoto. Abriu-o com ansiedade. Pôde ver algumas páginas ainda manchadas de sangue.
         Apertando o livro contra o peito, perguntou:
         – Sei que me achaste pelo endereço que está escrito aqui na capa, mas como conseguiste isto?
         O menino olhou-a com carinho e explicou:
         – Mês passado, num domingo à noite, depois de tomar um lanche que é servido pelo pastor da igreja, no encerramento do culto, saí procurando um lugar para dormir. Foi quando ouvi dois tiros. Aproximei-me. Vi um homem que se afastava correndo de um corpo estendido no chão.
         A anciã interrompeu seu pequeno interlocutor:
         – Não viste o rosto dele? Deu para reconhecer quem era?
         Apesar de menino, compreendeu o porquê da fisionomia de angústia que se retratou naquela senhora.
         – Estava escuro, não deu para reconhecer, não, senhora – , respondeu de pronto. Continuou sua narrativa:
         – Percebi que aquele rapaz ainda estava vivo. Abaixei-me para tentar socorrê-lo, mas não houve mais tempo. Ele apenas disse antes de morrer: “entrega esta bíblia para minha mãe. Diz que eu a amo muito”.
         Lágrimas pesadas fluíram dos olhos cansados daquela mulher. Ela segurou com uma das mãos a peça de tricô que tecia e que havia deixado cair em seu colo. Com a outra, a bíblia. Levantou-se devagar da cadeira de embalo. Andou em direção a uma mesa desgastada por décadas, ornada com um vaso de flores já sem vida, deixou os objetos e buscou na velha geladeira um pouco de água.
         O garoto, em silêncio, assistiu àquele ritual de dor, de saudade, quase sem mover um músculo que fosse.
         Andou mais um pouco em direção à janela, abriu-a de par em par. Enquanto a brisa que soprava suave acarinhava-lhe os cabelos nevados, falou devagar:
         – Era um filho bom. Trabalhava duro para que não faltasse nada dentro de casa... Estudava de noite... Era carinhoso, era temente a Deus.
         Fez uma pausa como que buscasse forças para continuar:
         – Freqüentava a igreja, fazia parte do coral. Estou procurando entender por que Deus o levou.
         Timidamente o menino argumentou:
         – Deus sempre tem um propósito em tudo o que faz. Custa-nos por vezes, entender os seus desígnios.
         – Meu filho, sirvo a Deus por muitos anos. Não estou revoltada... a dor que sinto é de saudade. Oro pedindo forças para suportar essa provação. Mas por que meu filho...
         O menino apenas olhou em seus olhos. Ela continuou:
         – Confesso que tenho vontade de acabar também com esse criminoso.
         – Entendo sua revolta, senhora, mas Deus não disse para amarmos nossos inimigos?
         – Como poderei amar o homem que matou meu filho? Será possível isso?
         O menino a segurou em uma de suas mãos. Mansamente falou:
         – Tudo poderia começar com um perdão, a senhora não acha? Jesus na hora de sua morte pediu que seu Pai perdoasse seus algozes. E nós fomos esses algozes através do pecado. Ele morreu para nos salvar.
         Ainda de frente para a janela, ao carinho da brisa que não parava de soprar, enxugou as lágrimas do rosto com as mãos. Continuou:
         – Onde moras, guri?
         O menino, que a acompanhara até a janela, retrucou:
         – Moro em vários lugares. Onde paro é minha casa.
         – Estás dizendo que moras nas ruas? Não tens casa? Não vês que é perigoso? Não viste o que aconteceu com meu filho?
         O garoto ficou em silêncio por um breve instante. Olhou-a carinhosamente para responder:
         – Tenho muitas casas. Onde me recebem, moro.
         A senhora voltou para a cadeira de embalo. Ofereceu um banquinho para o menino. Com a voz embargada, continuou:
         – Soube que a polícia prendeu o homem que matou meu filho. Ele confessou. Tem apenas 19 anos. É viciado em drogas. Aos 17 anos matou um outro menino de 16 em uma briga de gangues. Havia fugido da casa de detenção de menores há poucos dias quando matou meu filho.
         O menino que ouvia atento, calado, ajeitou-se no banco, e falou:
         – Os homens seriam diferentes se procurassem mais a Deus.
         A mulher observou em seguida:
         – Vejo que alguém já te falou de Deus.
         Os dois mantiveram uma longa conversa. Ao se despedirem, a senhora falou:
         – Gostaria que voltasses outra vez para continuarmos a prosa. Vem amanhã cedo tomar café comigo.
         O menino sorriu, beijou as mãos da setuagenária. Ganhou as ruas.
         A noite caiu silenciosa sobre aquele lugarejo.
Na humilde casa, a velha senhora sentou-se à frente de  uma  pequena  televisão.  Entre  cochilos,  uma notícia
despertou-lhe a atenção: uma rebelião na cadeia local deixou alguns mortos. Entre os vários feridos, o assassino de seu filho.
         O dia estava clareando quando a mulher abriu a porta da casa. Do outro lado da rua pôde divisar a silhueta magra do seu visitante do dia anterior. Chamou-o acenando com a mão.
         O menino atravessou a rua, aproximou-se da velha senhora. Cumprimentou-a:
         – Bom-dia!
         Com um breve sorriso, convidou o guri para entrar:
         – Vem tomar um café. Está quentinho. Fiz há pouco.
         A mulher fez com que o menino sentasse à mesa. Serviu-lhe, em uma caneca colorida, café com leite. Serviu-lhe também um bom pedaço de pão esquentado com manteiga. Sentou-se do outro lado da mesa. Ficou observando a criança através da fumaça que saía de sua caneca.
         O menino percebeu aquele olhar de saudade e comentou:
         – Está se lembrando de seu filho, não é verdade?
         Ela ficou em silêncio. Depois falou:
         – Tens razão. Estou me lembrando do meu filho. Sempre lhe servia café nessa caneca. Era a sua preferida. Desde menino, assim da tua idade, ele sentava nesse lugar e usava essa caneca que ganhou de aniversário quando completou 10 anos.
         O guri sorriu, bebeu um gole do café, deu uma mordiscada no pão. A mulher sorriu também. Em seguida levantou-se, foi até o menino, abraçou-o carinhosamente. Balbuciando falou:
         – É incrível, comes exatamente como ele comia.
         A mulher voltou a sentar-se do outro lado da mesa. Continuou a falar:
         – Foi Deus que te enviou aqui comigo. Depois que conversamos ontem, fiquei me sentindo muito melhor.
         – Fico feliz por isso – disse o rapazola sorrindo.
         A mulher esperou pacientemente que o guri terminasse de tomar café para comentar:
         – Hoje precisarei sair de casa. Vou até o hospital municipal. O homem que matou meu filho tentou fugir da cadeia e foi ferido. Preciso falar com ele. Tenho algo para lhe entregar.
         – Posso ir com a senhora, se desejar.
         Não demorou muito para que os dois saíssem juntos.
         No hospital, o menino ficou aguardando na porta enquanto a velha senhora foi conduzida até a enfermaria na qual se encontrava, algemado no leito, o enfermo detento.
Aproximou-se devagar. De pé à cabeceira do leito, olhou nos olhos daquele homem. Viu ali retratada a alma da marginalidade, do desamor, do ódio que habita em corações vazios e descrentes.
O marginal inclinou a cabeça em sua direção. Falou desconfiado:
– Eu lhe conheço, dona?
– Não, não me conheces – respondeu de pronto. E continuou:
– O rapaz que mataste quando saía da igreja era meu filho.
O marginal interrompeu:
– Dona, devo dizer-lhe que já cometi muitos erros em minha vida; até matei. Não volto atrás. A única coisa da qual me arrependo é de ter morto seu filho. Até hoje sinto remorso pelo que fiz. Se pudesse desfazer isso...
A mulher, entristecida, falou:
– Vim aqui para dizer que te perdoo pela morte do meu filho. Vim trazer-te também um presente.
Estendendo a mão em sua direção, ofereceu-lhe a bíblia que carregava.
O marginal olhou-a nos olhos mais uma vez. Com a mão que estava livre, recebeu o Livro Santo. Olhou-o como que assustado e falou baixinho:
– Ele estava com esse livro quando o abordei. Foi nele que se abraçou como que pedindo proteção.
A senhora, com lágrimas nos olhos, retrucou:
– Todos morreremos um dia. Não importa a hora nem quando. Importa se estamos ou não com Deus e Ele esteve com meu filho em todos os momentos de sua vida. Agora estão mais juntos que nunca.
         A mulher, a passos lentos, se afastou do leito do marginal, mas viu que uma lágrima sorrateira escapou-se-lhe dos olhos quando percebeu que o livro estava manchado com o sangue que maldosamente derramara.
         Ao encontrar o menino na saída do hospital, falou com ternura:
         – Meu filho, foi muito bom ter-te conhecido, conversado contigo. Estavas com a razão. Não sabes o quanto me fez bem perdoar esse moço. Sinto-me aliviada. Vamos para casa.
         Aquela senhora cansada pela vida passou a mão por cima dos ombros de seu pequeno acompanhante. Seguiram conversando.
         Almoçaram juntos. Antes que a noite caísse, o menino despediu-se, levando consigo, em seu pequeno bornal, uma antiga e colorida caneca que recebera de presente daquela senhora.
Mais uma vez, sem rumo, abraçou o caminho incerto das ruas.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Malfeitor


O Malfeitor

O menino sentou-se à beira da calçada. Estava muito cansado. Anoitecia.
Pessoas, saindo do trabalho, paravam para fazer compras de última hora. Outros usavam rápido o caixa-eletrônico.
Num relance, um carro pára. A porta abriu-se. Três homens, encapuzados, saem portando escopetas e invadem o estabelecimento comercial. Um quarto homem ficou aguardando no veículo com o motor ligado.
Nervoso, enquanto esperava, viu que o menino, sentado na calçada próxima, o observava. Tentou desviar o rosto para não ser reconhecido.
Alguns momentos depois seus companheiros retornaram segurando alguns sacos. Entraram rápidos no carro, que arrancando veloz, perdeu-se nas ruas da cidade.
O menino presenciou o tumulto que os assaltantes deixaram como rastro. Em pouco tempo vários policiais chegaram ao local. Após interrogarem  algumas  vítimas,


um deles se aproximou do garoto. Num tom nada amistoso, perguntou:
– Escuta aqui, moleque, viste alguma coisa?
O garoto olhou para o homem, examinando-o com cuidado. O cenho franzido, os olhos negros amendoados, a cicatriz no pescoço que a gola da camisa não conseguia esconder, insinuavam-lhe uma fisionomia desagradável, porém familiar.
O homem insistiu na pergunta:
– Presta bem atenção, seu pulguento, viste ou não alguma coisa aqui?
O garoto magro, franzino, fitou com brandura aquele rosto hostil que lhe argüia. Respondeu:
– Senhor, eu vi quando um carro azul parou perto de mim. Desceram três homens encapuzados. O motorista ficou esperando. Depois voltaram, entraram no carro, e dobraram aquela esquina – disse apontando com a mão.
O policial olhando para os colegas, falou:
– Já temos muitas testemunhas para depor. Este guri não viu nada.
O grupo militar se dirigiu à viatura que o trouxera desaparecendo rumo à delegacia.
O menino, descalço e sem rumo, saiu à procura de um abrigo para passar a noite.
Lembrou-se de que na praça do chafariz havia uma gruta. Lá, já passara muitas noites junto com um grupo de meninos de rua.
Entrou devagar, procurou um lugar em volta de uma fogueira, que o grupo havia acendido. Sentou-se. De uma sacola que carregava a tiracolo, tirou alguns pães, partiu-os, e os distribuiu ao grupo. Um deles, que tinha ascendência sobre os demais, falou:
– Bem que poderia ser uma garrafa de pinga. A noite vai ser fria, possivelmente agitada. Roubaram o supermercado.
Uma menina, aparentando uns dez anos, afastou do nariz a garrafa de cola de sapateiro. Com a voz embargada, falou:
– Da última vez que aqueles guardas vieram aqui, nos bateram muito. Queriam informações. Como dizer uma coisa que não sabemos?
O líder do grupo, depois de acender um “baseado”, comentou:
– Eles sabem que nós ouvimos muitas coisas que acontecem por aí. Mas sabemos que é melhor, também mais seguro, permanecermos calados.
O dia amanheceu. No chafariz, o menino lavou o rosto. Dirigiu-se a um banco da praça. Retirou da sacola o último pedaço de pão duro e comeu-o como se fora a melhor iguaria que alguém pudesse saborear.
Caminhando, sempre sem pressa, chegou à feira. Por lá sempre conseguia eventualmente uma fruta desprezada ou outra coisa qualquer para comer.
De longe, reconheceu a silhueta de um homem. Aproximou-se. Um policial de cenho franzido, olhos negros, amendoados, com uma cicatriz no pescoço, ameaçava a dona de uma barraca:
– De tarde eu volto. Se não receber minha grana, mando te despejar deste ponto.
Já ia saindo quando percebeu a presença do menino. Enraivecido, segurou-o pela gola da camisa. Levantando do chão, esbravejou:
– Não és o pulguento que estavas ontem na porta do supermercado que foi assaltado? Que fazes aqui?
Tentando apoiar-se nas pontas dos pés, com dificuldade, respondeu:
– É verdade, eu estava lá. Hoje vim só arrumar umas frutas para comer.
Resmungando, o policial ameaçou:
– Da próxima vez que te encontrar, seja por acaso ou não, apanharás uns bofetes. És muito abelhudo.
Assim que o policial se afastou, a dona da banca, uma senhora de uns sessenta e poucos anos, aproximou-se do garoto, afagou-lhe os cabelos, ponderando:
– Aquele “brutamonte” te machucou, meu filho?
O menino, que via aquela senhora pela primeira vez, entendendo seu gesto de carinho ao chamá-lo de filho, disse-lhe:
– Vejo bondade no seu coração.
A velha senhora olhando-o, desabafou:
– Este policial vem me tomando dinheiro já faz um bom tempo. Está quase insuportável continuar aqui. Tenho orado para Deus me ajudar, mas parece que Ele ainda não me ouviu.
Por um momento o guri fez silêncio. Apenas olhou para aquele rosto suado marcado pelo trabalho pesado de muitos anos. Os cabelos, quase totalmente brancos e enrolados em uma trança parcialmente desfeita, revelavam seu cansaço. O carinho suave que recebera momentos antes pareceu quase impossível que tivesse partido daquelas mãos tão calejadas.
O menino sorriu, beijou-lhe a mão. Disse:
– Deus sempre responde às orações no tempo certo. Às vezes, manda um emissário, em outras, vem pessoalmente. Tenha certeza de que esse policial lhe importunou pela última vez.
– O que te dá certeza disso? – perguntou apressada a senhora.
– A Bíblia é a Palavra de Deus. Lá está escrito que Ele responde às orações de quem pede com fé. Está escrito também que é fiel à sua Palavra.
A senhora pensou por um momento. Continuou a conversa:
– Meu filho, acredito em Deus. Sei que Ele é justo, bondoso, sempre presente. Vou continuar orando, pedindo ajuda, mas independente de tudo vou tentar me aproximar cada vez mais d’Ele.
O menino foi se afastando até que desapareceu dos olhos tristes daquela mulher.
Já estava escurecendo. Na porta de um centro lotérico, um carro azul pára. Três homens encapuzados descem. Num relance, invadem a casa de jogo. Alguns estampidos de bala assustam os presentes. Os bandidos fogem o mais rápido possível.
Os seguranças do centro lotérico saem atirando em direção ao carro que arranca, e desgovernado, colide com um poste da rede elétrica da rua a algumas quadras dali. Três bandidos fogem. O motorista fica preso nas ferragens contorcidas do veículo.
Sangrando, ele tenta livrar-se do cinto de segurança que emperrou. Olha através da janela partida. Vê alguém se aproximando.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, uma voz suave de criança se fez ouvir:
– Espere um momento, vou ajudá-lo.
Com esforço abriu a porta do carro. Com um pequeno canivete que usava para descascar frutas, cortou o cinto emperrado.
O homem saiu devagar. Afastou-se levando o menino pela mão. Mais adiante tomaram um táxi; depois de algum tempo, chegaram a uma casa isolada na periferia da cidade.
O garoto olhou para aquele homem de cenho franzido, olhos negros, amendoados, cicatriz no pescoço. Intrigado, perguntou:
– Por que o senhor é policial?
O homem que tentava com uma toalha limpar o sangue que lhe descia pela face retrucou:
– Queres na verdade saber é porque eu, sendo policial, faço assaltos como um bandido, não é?
– Não, ­ respondeu o menino ­ Quero saber mesmo por que quis ser policial.
O homem pensando um pouco respondeu:
– Eu te conto, mas só se me disseres por que me ajudaste. Sei que me reconheceste desde o supermercado. Viste que tomo dinheiro dos feirantes, além disso, ainda te prometi umas bofetadas. Tu és doido pulguento?
– Às vezes parece loucura seguir os mandamentos de Deus como, por exemplo, amar os inimigos ou dar a outra face quando se recebe uma bofetada.
O policial continuou:
– Também parece loucura andar mais uma milha com quem já nos obrigou a andar uma ou ainda dar a casaca para quem já nos tomou a túnica.
O menino sorrindo, continuou:
– Vejo que o senhor conhece alguma coisa da Bíblia.
Finalmente, o homem contou sua história:
“Meu pai era um policial honesto. Amava a farda mais que tudo. Aos domingos freqüentava uma igreja junto com minha mãe. Eu os acompanhava.”
“Ele trabalhava de noite fazendo uns biscates como segurança em festas para ganhar mais alguns trocados.”
“Minha mãe se matava de lavar roupas para fora tentando ajudar no orçamento familiar. Trabalharam até os últimos dias de suas vidas. Jurei que seria policial, que teria muito dinheiro.”
O garoto escutou atento, em silêncio.
Viu também uma ferida de bala próxima ao mamilo direito quando, com esforço, o policial tirou a blusa. Isso justificava sua respiração ofegante. Falou em seguida:
– O senhor precisa de um médico. Está sangrando, esse ferimento parece ruim.
O homem pegou um lenço, molhou com álcool, pôs sobre a ferida no peito. Resmungando, falou:
– Amanhã estarei bem. Se procurar médico, acabo na cadeia.
– O senhor gostava do seu pai? Ele lhe maltratava? Maltratava sua mãe?
O policial irritou-se com as perguntas feitas tão de repente.
– Estás doido, pulguento? Que perguntas mais idiotas essas? Meu pai era bondoso tanto comigo quanto com minha mãe. Sempre nos tratou bem.
– Por que o senhor não imitou seu pai, se gostava dele?
Algumas gotas de suor começaram a escorrer pela testa do policial.
A sede que sentiu, provocada pela perda de sangue, obrigou-o a andar até uma velha geladeira. Abriu-a, tirou uma lata de cerveja, e a goles largos, bebeu-a de uma só vez. Num acesso de raiva, amassou a lata com a mão, jogou-a no chão; dirigindo-se ao guri, falou:
  Eu imitei meu pai. Não sou policial?
– Desculpe, senhor – respondeu o guri –, a sua farda é de policial, mas seu coração é de bandido. O coração do seu pai era de bandido?
O homem quis andar em direção ao menino, mas resolveu sentar-se porque com o esforço o sangramento aumentara.
– Escuta aqui, moleque, vou acabar dando cabo de ti. Nunca matei ninguém, mas não será difícil começar.
O garoto insistiu:
– Só mais uma pergunta: O seu pai chegou a ver o senhor como um bandido?
O homem tossiu, ajeitou-se na poltrona, apertou mais o pano com álcool sobre o ferimento. Respondeu:
– Não, não viu. Nem minha mãe. Morreram acreditando que eu seria um bom policial. Oravam para que eu voltasse para a igreja, mas isso não conseguiram. Deus estava ocupado demais para dar ouvido a um velho policial e sua esposa.
– Deus tem o tempo certo para tudo. Ele ama a todos igualmente. Padeceu na cruz por todos nós. O seu sangue foi derramado por todos, sejam ricos, pobres, brancos, negros...
O homem interrompeu asperamente:
– Não sei por que estou aqui conversando contigo, perdendo meu tempo que já é pouco. Já vi muitos ferimentos à bala. Este pode me levar à sepultura.
– Já pensou que Deus pode ajudar o senhor?
O policial fez um esforço para sorrir.
– Só não matei, mas já roubei, extorqui, maltratei, trafiquei... Achas que esse teu Deus não viu isso?
– O nosso Deus vê tudo, se entristece quando percebe alguém se afastando do caminho que seu filho Jesus mostrou. Se houver arrependimento, Ele perdoa.
O policial ouviu atentamente o que o menino falava. Um suor pegajoso começou a ensopar-lhe o rosto. A respiração tornou-se mais difícil.
O menino, chegando mais perto, disse:
– O senhor está ficando muito fraco. Quer que eu peça ajuda?
– Nem pensar – respondeu resmungando –­ eu seria preso e “policia” na cadeia pena mais que todos.
– O senhor se lembra de algum pedido que um dia seu pai possa lhe ter feito?
– Queres ler minha mente, pulguento? Ele sempre dizia para eu confiar em Deus, para não me afastar dele, outras coisas assim...
– Não quer tentar pedir ajuda para Deus agora? O que o senhor perderia?
– Às vezes acho que meu pai tinha razão... Ele não tinha dinheiro, mas nunca lhe faltou o pão. Dizia-se feliz porque era servo de Deus. Se eu pudesse começar tudo de novo...
– O senhor conhece a história do “bom” ladrão?
O policial tornou a esboçar um sorriso. Falou:
– Dizem que a última coisa que roubou na vida foi o reino dos céus...
– Por que o senhor não faz o mesmo?
– Achas que estou morrendo, seu pulguento?
O menino sorriu. Sacudiu negativamente a cabeça. Ainda sorrindo, falou:
– O senhor pode ficar bom, é só confiar em Deus.
O homem se entristeceu muito. Falou suplicante:
– Falaste como meu pai. Acho que não sei mais orar...
– Fale com Deus como se O estivesse vendo aqui diante de nós. Na verdade, Ele está conosco.
Balbuciando devagar aquele homem ajoelhou-se, prostrou o rosto no chão e orou:
“Faz muito tempo que não converso contigo, meu Deus. Faz muito tempo... Acho que ainda era criança quando me ajoelhei para orar pela última vez. Olha para o que restou de mim... já não sei se podes me perdoar, mas se puderes, perdoa-me. Não peço pela minha vida, mas pela minha alma”.
O policial perdeu os sentidos. Com muito esforço o menino conseguiu ajeitá-lo no chão. Saiu rapidamente em busca de socorro.
Anos depois, andando pelas ruas da cidade, o mesmo menino, descalço, sem rumo, entrou em uma igreja.
Um pastor, cheio de alegria, pregava empolgado a Palavra de Deus. O garoto aproximou-se, olhou para aquele homem. Examinou-o cuidadosamente. Pôde contemplar um cenho descontraído, olhos negros amendoados, e uma cicatriz no pescoço que o colarinho clerical não conseguia esconder. Aquela era uma fisionomia familiar, porém agora muito agradável.
Pastor Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com