sábado, 23 de março de 2013

Davi e Golias



I Sm 17:41-58
         O vento passeava livre entre os soldados do exército de Israel que, abarracados em um monte, preparavam-se para batalha. A expectativa entre os guerreiros mostrava, claramente, a desesperança reinante. Pairava no ar uma sensação de derrota, De quase pânico.
         Não muito distante, em outra montanha, o esquadrão filisteu assentara acampamento. A brisa fria, que o acarinhava, espalhava um sentimento de desprezo e desrespeito pelos iminentes opositores. Acreditava, o exército filisteu, na vitória; ansiava pelos despojos de uma guerra que prejulgava vencida.
         Entre os exércitos havia um vale.
         Saul, rei dos israelitas, apesar de ser homem forte, de grande estatura, que se destacava entre os soldados dos ombros para cima, não tinha como esconder o temor que se lhe aninhara no rosto. A coroa de ouro, incrustada de pedras preciosas, não impunha a serenidade e muito menos a autoridade de que precisava naquele momento.
         A vegetação rasteira dos montes ainda estava encoberta pelo orvalho da noite quando um homem, de quase três metros de altura, envergando pesada armadura de guerra, desceu ao vale. Aproximando-se do exército de Israel, vociferava insultos e desafios.
         ­ “Para que saís formando-vos em linha de batalha? Não sou eu filisteu, e vós, servos de Saul? Escolhei entre vós um homem que desça contra mim”.
         Aquele guerreiro propunha um duelo, artifício por vezes usado entre dois exércitos que se defrontariam. Cada um escolhia um campeão de lutas para uma disputa até a morte. O povo do soldado perdedor tornava-se escravo do vencedor.
         Eu estava lá. Vi quando Davi, um jovem ruivo, pastor de ovelhas, chegou, trazendo para seus três irmãos, combatentes de Saul, um punhado de pães e queijo enviados por seu pai, Jessé.
         Os berros proferidos pelo guerreiro gigante, incomodavam, intimidavam cada vez mais os israelitas. Olhando do alto do monte para o desafiante, Davi perguntou a um compatriota:
         ­ Quem é esse incircunciso filisteu para afrontar o exército do Deus vivo?
         Percebi algo diferente na face daquele rapaz. Não apresentava as marcas do medo que desfiguram pessoas. Senti que, naquele peito ardente, batia um coração temente a Deus.
         O soldado levou a mão à cintura, segurou no cabo da espada como que quisesse se certificar de que ainda estiva lá. Baixando a cabeça, respondeu demonstrando fraqueza e temor:
         ­ O nome dele é Golias... Há quarenta dias, quando nasce o sol e ao entardecer, ele nos afronta. O rei Saul já prometeu a filha em casamento, dar grandes riquezas e liberar os impostos da família daquele que o derrotar. Mesmo assim, ninguém ousa enfrentá-lo.
         Davi olhou para o vale. Viu a imagem do campeão gigante que aterrorizava os homens de Israel.
Os raios do sol que resvalavam em seu capacete de bronze deixavam reluzentes as escamas da pesada couraça que lhe cobria o peito. Entre os ombros sustentava um dardo do mesmo bronze polido usado nas caneleiras que lhe cobriam as alongadas pernas. A lança, cuja haste lembrava o eixo de um tecelão, sustentando pesada ponta de ferro, completava a armadura que todos julgavam inviolável.
Agitou-se o coração de Davi. Lembrou-se de como Deus o ajudara a matar um leão e um urso quando pastoreava as ovelhas de seu pai. Acreditou que o SENHOR também o ajudaria a vencer aquele desafio.
Sem opção, Saul, sabedor de que um jovem dispusera-se a aceitar o duelo com o filisteu, chamou-o. Queria vesti-lo com sua própria armadura. Davi não conseguiu dar nenhum passo com ela. Era muito pesada para ele. Devolveu-a.
O jovem pastor desceu ao vale. Golias estava lá.
Protegido por um arbusto vi quando os dois se aproximaram um do outro. O gigante divisou em Davi um oponente fraco, já vencido, que seria morto facilmente. Como, sem armadura, sem espada, alguém poderia feri-lo de morte? Amaldiçoando-o, tentando intimidá-lo, esbravejou:
­ Vou dar tua carne às bestas-feras do campo e às aves do céu.
Davi, andando com passos lentos, olhando nos olhos de Golias, mas com os pensamentos voltados a Deus em oração, replicou:
­ “Tu vens contra mim com espada, e com lança, e com escudo; eu porém, vou contra ti em nome do SENHOR DOS EXÉRCITOS, o DEUS dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado”.
O gigante esboçou um sorriso audaz. Adiantou-se para a luta.
Davi, sem aumentar o ritmo dos passos, levou a mão ao alforje, escolheu uma pedra, colocou-a na funda e a arremessou. Ferido, com a pedra cravada na testa, o filisteu caiu de rosto no chão. Ainda sem alterar a cadência dos passos, Davi chegou até ele e cortou-lhe a cabeça com sua própria espada.
Um alarido de júbilo ecoou pelo vale. Diante da vitória, os israelitas saíram em perseguição aos filisteus que, sem entender como o seu campeão gigante fora derrotado, fugiram espavoridos.
À sombra daquela pequena árvore, presenciei a primeira grande vitória de Davi. O que levou o pequeno pastor a essa grande conquista? Muitas respostas, como fumaça carregada pelo vento, passaram pela minha mente.
Davi teve a oportunidade de escolha. Poderia não ter entregue o alimento aos irmãos, buscado o exército dos filisteus ou mesmo ficar no vale entre os desafetos.
Optou por obedecer ao pai. Escolheu o melhor lugar, juntou-se ao EXÉRCITO DO SENHOR. Quantos de nós fazemos a escolha errada! Preferimos o lado que aparentemente já ganhou a batalha que ainda nem começou. Outros, pior ainda... Por covardia, por medo de decidir, ficam no vale entre os adversários.
Davi não se intimidou com as ameaças de Golias. Não se acovardou. Não viu naquele gigante um problema sem solução. Com sabedoria, não usou a armadura do homem Saul. Recobriu-se de fé. Atirou a pedra, mas creu que ela seria guiada pelo Senhor. Lutou contra o inimigo em nome do SENHOR DOS EXÉRCITOS.
Fui testemunha da queda do gigante. Vi sua expressão de espanto. Presenciei quando apagou-se o brilho de seus olhos. Humilhado, rosto na terra acabou como tantos outros que escolhem o exército errado.
Estou de volta. A mesma batalha se repete todos os dias em nosso tempo. Diariamente temos que tomar decisões. Já vi muitos “davis” de hoje vencerem vários “golias” que aos berros se apresentaram em nossas vidas. Infelizmente, também presenciei centenas de derrotados, caídos à beira do caminho, porque não permitiram que Deus guiasse suas pedras... Para qual exército entregaste os pães que teu pai te deu?
Pr. Ajorge

segunda-feira, 11 de março de 2013

A cura de Naamã



        Conheci Naamã de perto. General valoroso, comandante do exército do rei da Síria, herói de muitas guerras, destemido, jamais fugia da fúria dos combates. O SENHOR lhe concedera muitas vitórias.
         Não raramente, entre uma batalha e outra, eu o via deprimido, cabisbaixo, triste, procurando esconder-se de todos. O contraste entre o general em campanha e o homem fora das lutas, sem a armadura de guerra que o caracterizava, era insofismável. Entretanto, portava a doença mais temida da época: a lepra.
         Escondia cuidadosamente o fato, pois a lei obrigava aos portadores desse achaque que vivessem fora da cidade, isolados. O seu mal estava em um estágio que ainda lhe permitia a convivência com outras pessoas.
         Muitas vezes vi aquele homem isolar-se até da própria família, tentando diminuir ou talvez esconder sua vergonha. Quantos de nós, pensei, temos mistérios que não partilhamos com ninguém e os enterramos no mais íntimo de nossa alma? Segredos que não temos coragem de confessá-los nem para os amigos mais chegados? Poderíamos chamar a isso de Síndrome de Naamã?
         Entre os muitos despojos de guerras conquistados pelo general estava uma menina, trazida de Israel, para servir como escrava à esposa de Naamã. Essa criança, magra, rosto fino, dona de um único vestido, percebeu o sofrimento de seu senhor.
Embora sofresse por ter sido arrancada do seio da família, perdido a liberdade e a convivência dos amiguinhos de infância, resolveu ajudar. Tudo lhe fora roubado, menos a alegria de servir a um Deus que ensina a não guardar rancor nem ódio no coração. Aprendera a amar as pessoas mesmo que fossem inimigas. Inexplicavelmente era feliz.
         Carinhosamente, quando o dia amanhecia, a menina penteava a esposa de Naamã. As mãos pequenas, segurando um pente entalhado em prata pura, alinhavam aqueles cabelos longos, mui negros, untados com óleo aromático. Entre um afago e outro, confidenciou à sua senhora:
         ­ Na minha terra existe um profeta do Deus Altíssimo. Creio que se meu senhor estivesse diante dele, seria curado da lepra.
         Um sorriso alegre alindou o rosto da mulher. Sentiu naquelas palavras uma luz de esperança para o marido. Havia sinceridade na menina; de seu coração sobejavam fé, bondade e amor.
         Naamã obteve do seu senhor autorização para ir ter com o rei de Israel. Carregando em mulas ricos presentes, acompanhado de grande comitiva, deixou a Síria.
         As portas gigantescas do palácio de Israel, rangendo, se abriram. O general entregou nas mãos do próprio rei a carta que seu senhor escrevera. À medida que o monarca lia a missiva, um suor persistente brotava de sua testa e perdia-se rapidamente entre os pelos de sua barba.
         Amassando o pergaminho com as mãos, jogou-o para longe. Num relance rasgou suas vestes. Com o semblante descaído, externando grande preocupação, desabafou:
         ­ Como posso restituir a saúde de alguém? Posso dar vida a uma pessoa? Serei Deus por acaso? Como poderia eu curá-lo da lepra? O que pede esta carta é impossível que eu faça.
         Desesperado, aquele rei sabia que algumas coisas o homem pode fazer por si só, outras não. Sabia que o homem pode matar, mas não dar vida...
         Temeroso, passando as mãos pela cabeça, procurou razões para aquela mensagem: Talvez o rei da Síria esteja procurando uma desculpa para me atacar. Por que me pede que cure seu general?
         Eliseu, o profeta de Deus, ao qual a menina se referira, ao saber da impaciência e preocupação do rei, mandou-lhe um recado:
         ­ Deixa que esse homem venha até mim e saberá que em Israel existe um profeta.
         Eu estava lá. Acompanhei de longe a caravana de Naamã. Na curva de uma estrada poeirenta um casebre se escondia entre a vegetação. A fumaça que fugia displicente de uma velha chaminé denunciava a presença de alguém.
         A caravana parou.
         Antes que algum dos visitantes se manifestasse, Eliseu mandou um mensageiro a Naamã com uma ordem:
         ­ Vai, lava-te sete vezes no Jordão, e a tua carne será restaurada. Ficarás limpo.
         Como se fizesse parte daquela comitiva, aproximei-me de Naamã. Presenciei quando a expressão de esperança que acalentava no rosto deu lugar à máscara da decepção. Irritado, arrumou-se na sela do cavalo que montava, retesou as rédeas e extravasou resmungos de ira:
         ­ “Pensava eu que ele sairia a ter comigo, por-se-ia de pé, invocaria o nome do Senhor, seu Deus, moveria a mão sobre o lugar da lepra e restauraria o leproso”.
         E continuou com o desabafo:
         ­ Na minha terra não existem rios melhores e mais limpos que o Jordão? Não poderia banhar-me lá?
         Naamã estava acostumado às glórias. Havia sempre alguém a seus pés para reverenciá-lo. Recebia muitas e constantes honrarias que o faziam soberbo. O fantasma da lepra o aterrorizava, mas nem por isso se fazia humilde. Nunca ninguém o havia recebido de maneira tão fria nem o tratado como pessoa comum.
         Entendi, naquele momento, o proceder de Naamã. Precisava receber a libertação da lepra, mas queria que Deus o obedecesse; almejava que o milagre se realizasse em forma de um espetáculo produzido por ele mesmo. Não queria deixar que o SENHOR agisse a seu próprio modo.
         Quantas vezes atuamos como esse general? Quantas vezes exigimos que Deus nos conceda uma graça do modo como queremos, e não lhe damos liberdade para atuar, da sua própria maneira? Às vezes temos a presunção de querer mostrar ao SENHOR o que seria melhor para nós...
         Naamã deu a volta no cavalo. Intuía retornar quando um de seus oficiais, usando de bom senso, ponderou respeitosamente:
         ­ Meu pai, se o profeta te houvesse dito alguma coisa difícil, não o farias? Ele apenas te disse: lava-te e ficarás limpo.
         Pensativo, sem dizer palavra sequer, desfez o semblante de raiva. Dirigiu-se ao Jordão.
         A comitiva parou à beira do rio. As águas barrentas arrastavam na superfície algumas folhas caídas das muitas árvores que circundavam as margens.
         O general despiu-se de parte da indumentária. Caminhou rio adentro até que a água lhe chegou à cintura.
         Da margem observei seu primeiro mergulho. Ele agachou-se e quase no mesmo instante emergiu como que assustado. Olhou para seu próprio corpo. Nada acontecera. Na segunda imersão demorou-se um pouco mais.
         A expectativa foi muito grande por parte de todos quando Naamã imergiu pela sétima vez. Segundos depois, lentamente, colocou a cabeça fora d’água. A seguir, o pescoço, os ombros e os braços. Quem emergiu não foi mais o general de muitas batalhas, presunçoso, herói, mas um homem que aprendeu que só existe um Deus verdadeiro, um Deus de misericórdia, um Deus que perdoa e ama até o mais orgulhoso dos homens quando por Ele for reconhecido.
         Naamã não fez questão de vestir-se rapidamente, apesar do frio. Fez questão, sim, de mostrar a todos uma pele sem manchas, sem as feridas que o maltratavam e o consumiam.
         Parecia criança alegre quando, com sua comitiva, voltou para agradecer e presentear Eliseu.
         A última lição que aprendeu foi que Deus não se deixa comprar. O profeta não aceitou nenhum dos seus muitos presentes.
         Acompanhando a caravana de volta, ouvi Naamã reconhecer a soberania, a onipotência e a onisciência desse Deus maravilhoso ao qual servimos.
         Fiquei refletindo por muito tempo enquanto fazia o caminho de volta. Tirei uma conclusão: se Naamã houvesse mergulhado apenas seis vezes, e não sete, teria perdido a cura por muito pouco. Ele obedeceu integralmente à ordem dada por Deus através do profeta.
         O SENHOR tem bênçãos para cada um de nós, tenho certeza disso. Todos temos também, na vida, um rio Jordão... Quantas vezes nele já mergulhamos? Seis?
Pr. Ajorge