domingo, 24 de novembro de 2013

O Ermitão



Capítulo 5
O Ermitão
Primeira parte

Depois da curva de uma velha e poeirenta estrada que foge de uma cidadezinha do interior, pode-se ver a cerca que limita o sítio de um velho homem. Talvez o mais velho daquelas redondezas.
Pouca gente tenta aproximar-se de lá. Na entrada, um grande portão de madeira, pesado, invariavelmente fechado, sustenta uma advertência escrita em uma placa de zinco já descorada pelo tempo: “NÃO ENTRE”.
A cerca de acapu serpenteia, num abraço perene, um solitário pedaço de terra que se estende por quase um quilômetro. A casa ainda retrata, descuidada, a saudade da mansão que o tempo, aos poucos, cruelmente consumiu quase que prazerosamente.
Em frente à porta de entrada da velha mansão, um poste embolorado ilumina testemunhando, dia a dia, a mesmice daquele lugar.
Sempre pela manhã, bem cedo, o ancião carrega nas mãos trêmulas uma cuia com a qual cuidadosamente asperge milho no terreiro para as poucas, porém gordas galinhas. Dá aos porcos um punhado de mandioca ralada tirada da plantação do próprio sítio, junto com as sobras de algumas frutas.
Um menino franzino, depois de dobrar a curva da estrada, chegou ao velho portão de madeira. Leu a placa, que de maneira hostil, alertava para não entrar. Então gritou:
– Oh de casa!
Por alguns momentos ficou esperando resposta em vão. Insistiu outras vezes. Pôde perceber, depois de um bom tempo, através das frestas da cerca de acapu, um homem trôpego vindo em sua direção.
No alto da cabeça ostentava um chapéu de palha cujas abas, desfiadas, desenhavam uma sombra quadriculada em seu rosto realçando-lhe as rugas. Uma camisa de mangas compridas, exibindo vários remendos, cobria parcialmente a calça desbotada de brim azul. Andava devagar arrastando um par carcomido de sandálias havaianas. Nas mãos, segurava um grosso cajado de madeira que lhe servia não só de arma, mas também de apoio.
O menino calmamente esperou que ele se aproximasse do portão; antes que pudesse dizer alguma coisa, ouviu-o esbravejar:
– Que queres aqui? Por que esses gritos? Vai embora... Vai!
O menino, tentando controlar o nervosismo que o assolara, respondeu gaguejando:
– Desculpe-me senhor. É que vinha passando por aqui e vi aquela mangueira carregada de frutos. Estou com fome. Queria pedir-lhe, pelo menos, uma manga.
Num ímpeto de raiva o velho resmungou ainda mais alto:
– Eu te conheço, moleque. Deves ser um daqueles que, de vez em quando, pulam minha cerca para roubar minhas frutas. Vou avisando logo: se eu pegar algum de vocês aqui dentro, dou uma surra bem dada.
O menino falou com brandura:
– Senhor, me desculpe. Eu não sou daqui. É a primeira vez que venho. O senhor deve estar me confundindo com outro menino.
– Vocês são todos iguais – continuou gritando o velho –, juntam-se em bandos para perturbarem os outros. Realmente nunca te vi, mas deves ser igualzinho aos demais. Nenhum presta, cai fora, vai!
O garoto ainda insistiu:
– Senhor, pelo menos um copo de água... Vim de longe...
– Quero que tu te danes; vai logo embora se não te baixo o cajado agora mesmo.
As lágrimas que caíram dos olhos da criança o velho não viu. Viu apenas que se afastou lentamente com a cabeça baixa, recurvada pela imensa tristeza que sobre ele se abateu.
O ancião voltou ainda resmungando. Entrou na casa. Sentou-se em uma cadeira da sala. Olhou em volta de si como que admirando as paredes que não eram caiadas há muito tempo. Parou os olhos em um único e antigo retrato ali dependurado entre duas rachaduras. Era o de uma mulher jovem, bonita, com um menino no colo. Firmou mais os olhos tentando arrancar, do sorriso da jovem do retrato, talvez uma explicação para sua própria vida.
Retirou o chapéu de palha da cabeça, colocou-o sobre a mesa de tábuas, levantou-se devagar, aproximou-se de uma bilha na cozinha, tomou um gole d’água em um caneco de lata de leite condensado; caminhou até um banco bem debaixo de uma frondosa mangueira. Sentou-se.
Os pensamentos se enfileiravam em sua mente quando uma fruta caiu da árvore bem próxima a seus pés. Instintivamente olhou para o fruto; em seguida, seu olhar voltou-se em direção ao portão. Pôde apenas divisar sobre ele um pequeno pássaro pousado, mas lembrou do rosto pálido e magro do menino que lhe pedira alimento. Juntou a manga, limpou-a na barra da camisa; caminhou lentamente em direção à porteira. Não havia ninguém lá.
A noite desceu mais rápida nesse dia. Acompanhou-a uma tempestade com muito vento. O velho, deitado na cama, apenas se limitava a ouvir os trovões; virava o rosto cada vez que era iluminado por um relâmpago.
De manhã cedo o vento ainda não havia cessado. Com a cuia de milho nas mãos dirigiu-se ao terreiro para alimentar as galinhas. A chuva fina que molhava seu chapéu de palha, beijava-lhe o rosto. Quando juntou a primeira manga para alimentar os porcos, sem querer lembrou-se do menino outra vez. Procurou instintivamente seu vulto no portão.
A neblina e a garoa fina dificultavam-lhe a visão. Caminhava até o chiqueiro quando de repente um vento mais forte tombou uma árvore apodrecida pelos cupins. O velho tentou correr, mas não conseguiu. Um enorme tronco caiu por cima de suas pernas prendendo-o ao chão. Tentou em vão livrar-se. Quanto mais se esforçava para soltar-se, mais suas pernas doíam; suas forças se esgotavam.
A chuva parou de cair. Os primeiros raios do sol começaram a dourar-lhe o rosto. As mãos enlameadas, as unhas quebradas, negras, denunciavam as vãs tentativas que fez para escavar o chão no afã de livrar-se.
Gritou, mesmo sabendo que quase ninguém passava por ali. O último que passara, havia posto para correr, como já fizera com tantos outros.
Lembrou-se do menino que expulsara sem lhe dar comida. Arrependeu-se disso admitindo para si mesmo:
– Esse menino era diferente dos outros. Vi isso nos seus olhos.
Os pensamentos multiplicaram-se soltos na mente. Começou a relembrar de toda a vida. Lágrimas perderam-se no chão açoitado pela chuva. Sentiu que seus últimos momentos haviam chegado. Foi quando ouviu uma voz de criança:
– Senhor, senhor...
O velho abriu os olhos. Diante de si vislumbrou o vulto do menino que maltratara. Não teve coragem de pedir-lhe nada.
A criança abaixou-se entre os galhos da árvore que o prendiam; próximo ao seu rosto falou:
– Vou ver se retiro esse pau de cima de suas pernas.
As tentativas foram muitas, porém inúteis. Era pesado demais.
O velho, vendo o sacrifício da criança fez um esforço. Balbuciou:
– Ontem te neguei água e comida. Hoje queres me ajudar? Quem és tu?
O menino ignorou aquelas palavras. Retrucou:
– O senhor precisa sair logo daí. A cidade está longe, não mora ninguém aqui perto. Temos que dar um jeito.
O velho não entendeu quando o menino se afastou. Muitos pensamentos voltaram a povoar-lhe a mente.
Já admitira ter sido abandonado pelo guri quando o viu se aproximando com dificuldade, arrastando um longo pedaço de madeira.
– Que estás fazendo? Para que é isso?
– Sem dizer uma só palavra, apoiou o pau que trouxera em um outro menor que estava ali perto do homem. Fez uma alavanca. Com um pequeno esforço conseguiu folgar o tronco de cima do homem, que se esforçando, arrastou-se, ficando livre do tormento.
Tentou levantar-se; suas pernas doeram demais. Uma estava quebrada. Voltou os olhos para o garoto. Envergonhado voltou a perguntar:
– Por que estás me ajudando? Não te neguei até água outro dia? Por que não me deixaste aqui para morrer? Como me encontraste?
O menino olhou no rosto do velho; viu em cada uma das rugas que ostentava a marca de um sofrimento imposto pela longa vida. Delicadamente perguntou:
– O senhor já ouviu alguma vez falar de Jesus?
O homem não entendeu o porquê da pergunta. Fixou o olhar naquele pequeno e pálido rosto; insistiu:
Quem tu és? Como me encontraste?
– Senhor – respondeu –, outra hora conversaremos. O senhor precisa chegar até a cidade para cuidar dessa perna. Acho que está quebrada.
O vento começou a soprar forte outra vez. A porta da casa que ficara entreaberta bateu com força. O menino argumentou:
– Vi uma velha carroça debaixo de um alpendre quando estava procurando o caibro para fazer a alavanca.
Espantado com a argúcia do menino, completou:
– No curral tem um cavalo. Será que consegues...
Antes que pudesse completar a frase o garoto afastou-se outra vez; depois de certo tempo voltou guiando a carroça na qual atrelara o cavalo.
Com muita dor, gemendo bastante, o homem conseguiu subir e deitar-se no chão da carroça. Lentamente tomaram a direção do portão pesado de madeira. Após ultrapassá-lo, ganharam a estrada rumando para a cidade.
Os passos do cavalo eram lentos, cadenciados. O sacudir da carroça maltratava o velho homem, que deitado de costas, era também obrigado a receber no rosto os pingos grossos da chuva que como dardos teimavam em fustigar-lhe.
De vez em quando cobria os olhos com a manga da camisa branca parcialmente remendada. Ela se colara ao seu tórax magro e arfante umedecido pelos respingos.
A todo o momento procurava afugentar os pensamentos. Eles lhe crucificavam a mente. Tentando quebrar a monotonia e afastar a dor que sentia pelo corpo todo, dirigiu a palavra ao menino que pacientemente guiava a carroça:
– Ainda não me contaste como me achaste preso naquela árvore.
Sem soltar as rédeas da carroça, mas virando um pouco a cabeça para trás, matou sua curiosidade:
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 17 de novembro de 2013

A Procura


A Procura
Final

“Criei-me com minha mãe; aos fins de semana, meu pai ia buscar-me para passear. Esses passeios ficaram cada vez mais raros; sem explicação, cessaram”.
“Já na faculdade, tive o primeiro namorado. Depois de um ano, casei-me. Acho que depois disso tu mesma fazes parte da história. Meu marido só pensava em trabalhar. Deixava-me sozinha por muito tempo. Sem ter o que fazer, um dia experimentei um gole do wisky que sobrara do copo dele; quando percebi, havia me tornado uma alcoólatra. Fiz da vida de minha filha um inferno, impondo-lhe tantas restrições”.
A velha senhora, com mais paciência ainda, já com lágrimas nos olhos, tentou aconselhá-la:
– Minha filha – falou enxugando-lhe o rosto com um lenço –, você tem uma semente no seu coração. Deixe-a crescer. A Palavra de Deus é perfeita, sem enganos. Muitas vezes as pessoas não a seguem, procuram andar por conta própria. Essas, podem até aparentar felicidade sem que sejam realmente felizes. Se seu pai abandonou o lar, não foi porque a Palavra de Deus estivesse errada, mas sim, ele próprio errou. Deus é fiel, não muda nunca, nos ama de verdade.
A patroa ficou pensativa por uns momentos. A criada prosseguiu:
– Veja só: quem passa pela rua vendo esta casa rica, imponente, pode imaginar que a tristeza fez aqui morada? Que faz parte da vida de seus donos? Pode sequer imaginar o tamanho da amargura que se instalou dominando os corações da senhora e do patrão?
A mulher que atenta ouvia a criada, entregou-lhe a xícara de café que ainda tremulava em suas mãos. Ousou uma pergunta:
– Achas que minha vida ainda tem remédio?
A criada esboçou um leve sorriso. Compassadamente falou:
– Senhora, tenha certeza de que Jesus lhe ama. Para Ele nada é impossível. Basta a senhora crer de todo o seu coração, desejar que Ele seja o senhor de sua vida; tudo se resolverá.
– Quer dizer que se eu agora declarar Jesus como meu Senhor e salvador, minha filha voltará para casa, meu marido voltará a gostar de mim? Tudo se resolverá?
A criada sorriu com brandura. Consertou:
– Não é bem assim. Quando se aceita Jesus como Senhor e salvador, com toda sinceridade, o que modifica imediatamente é nosso interior, é nossa alma, é nossa maneira de ver as coisas. Tudo mais, Deus nos dará como acréscimo no devido tempo. Uma coisa a senhora terá de imediato: paz.
A mulher, ajeitando-se no sofá, argumentou:
– E meu pai que ia todo domingo para a igreja? Por que ele abandonou minha mãe?
– Quando se vai a uma igreja, seja qual for, não significa que estejamos livres de tentações. Não é a igreja que nos salva, mas sim o Senhor Jesus, que, aliás, deu sua vida na cruz do calvário para a remissão de nossos pecados. Temos que orar para que não se caia em tentação. Talvez tenha faltado a seu pai oração sincera e sobrado encenação. Nem todos que vão à igreja serão salvos, mas sim aqueles que cumprirem os mandamentos de Deus.
A mulher conteve um pouco o choro e balbuciou:
– Eu queria mudar de vida... queria ter a paz que tu tens...falar com essa segurança... ser feliz como parece que és...
A criada deixou cair a lágrima que há muito prendia no olhar. Afagou os cabelos da patroa; prosseguiu:
– Sou realmente feliz... Sou feliz não pelo dinheiro ou pelo conforto que desfruto nesta casa. Sou feliz porque tenho Jesus no meu coração... Sou feliz porque sei que quando partir deste mundo, tenho já um lugar que meu Pai celestial preparou para mim. Todos podem gozar dessa felicidade.
A mulher, que estava sentada no sofá, caiu de joelhos no chão ao lado da criada; abraçando-a soluçou:
– Quero aceitar Jesus, quero mudar, quero viver, quero me libertar, quero logo.
As duas mulheres se abraçaram; choraram juntas por alguns instantes.
A criada sussurrou ao ouvido da patroa:
– Ore.
– Eu não sei orar... eu não sei orar – repetiu a patroa.
– Diga o que seu coração está sentindo agora que Jesus lhe ouve.
A mulher soltou os braços que repousavam na criada, levou as mãos ao peito, o rosto até o chão. Deixou explodir em palavras seu coração:
– Senhor Jesus, eu quero acreditar em ti. Tenho vivido muito longe da tua Palavra. Fiz muitas coisas erradas que certamente não te agradaram. Perdoa-me. Perdoa-me se ainda puderes me perdoar. Mas eu quero mudar, eu vou mudar. Sei que fui culpada por minha filha ter fugido de casa, mas cuida dela. Se ela não sabe nada de Ti, foi porque eu não sabia para ensinar. Cuida dela meu Deus, nem que ela não volte mais para mim. Vou procurar ser boa esposa. Vou procurar aprender como Tu queres que se viva para não te ofender de novo. E... e... eu te aceito realmente como senhor da minha vida daqui por diante.
A criada ergueu a patroa; juntas seguiram rumo ao quarto do casal.
A chuva estava fina quando o carro chegou à cabeceira de uma ponte que se debruçava sobre um rio. Um vento frio soprava forte. O homem indagou ao garoto:
– Achas que minha filha pode ter vindo para este lugar? Estou começando a me arrepender de ter-te dado ouvidos.
Os primeiros raios do sol começavam a afastar a neblina que cobria o lugar. A fumaça, ainda presente, impedia uma visão mais clara. Homem e garoto, de mãos dadas, iniciaram a pé a travessia da ponte. Ao longe, a silhueta de uma moça fez o coração do homem bater mais forte. A palidez, que como um raio cobriu seu rosto, deixou-o perplexo.
O menino parou junto. O homem fixou o olhar no vulto da mulher, tentando reconhecê-lo. Examinou bem a silhueta dos cabelos compridos, o formato do rosto que a penumbra escondia, mas o que lhe deu certeza de que era sua filha foi o sorriso do menino que estava ao seu lado. Quis correr em sua direção, mas a criança segurou-o com as duas mãos.
– Acho melhor esperar um pouco. Ela pode se assustar e pular da ponte.
Com a voz embargada o homem concordou, passando a escutar seu pequeno acompanhante:
– Senhor, espere um pouco. Ela está quieta. Vamos esperar, depois iremos com calma, isto se ela não vier até nós.
– Achas que ela nos verá? Não sei por que estou concordando contigo. És apenas uma criança. Outra coisa: como sabias que ela viria para cá?
O menino sorriu. Falou sussurrando:
– Posso lhe dizer uma coisa? O senhor gosta muito de sua filha. Ela lhe foi dada por Deus. Tomar conta bem dela para Deus isso é mordomia cristã. Lembra-se de que já falamos sobre isso?
O homem, intrigado, deixou escapar um sorriso quase sem querer; num gesto amigo passou a mão nos cabelos do garoto esfregando-os levemente. Arguiu:
– Quer dizer que temos que ser bons mordomos das coisas que Deus nos põe nas mãos?
O menino completou: “Inclusive de filhos. A melhor maneira de cuidar dos filhos é ensinar-lhes o caminho que leva a Deus... Aliás, só existe um.”
– E tu, que vives nas ruas? Onde está teu pai? Ele é um bom mordomo para Deus?
O menino sorriu outra vez e explicou:
– Eu, mesmo na rua, sou feliz. Conheço meu pai que está no céu. Não é riqueza que faz alguém feliz. O senhor, sua família, com tudo que possuem, são felizes?
O homem, que não tirava os olhos da filha, retrucou:
– Tens razão. Não somos felizes. Gosto muito da minha mulher, da minha filha, mas acho que errei em relação a elas. Como dizes, não fui bom mordomo. Quem me dera poder voltar atrás; começar tudo de novo.
– Voltar atrás não é possível, mas começar tudo de novo... sim, é só querer.
– Quem te ensinou as coisas que sabes a respeito de Deus? Eu queria ter a certeza que tens quando falas delas.
A moça começou a andar em direção ao pai. O vento sacudia seus cabelos desalinhados. Os passos eram lentos, hesitantes. O homem quis andar em sua direção, mas não teve coragem. Limitou-se a esperar. Num curto instante de tempo pai e filha ficaram frente a frente. Não houve palavras. Apenas um abraço apertado selou o reencontro.
Os três entraram no carro; o abraço entre pai e filha se estreitou mais no coração, tendo como testemunhas as lágrimas que ambos derramaram.
O portão automático da casa se abriu dando passagem para o luxuoso carro, que silenciosamente atravessou o jardim refugiando-se na garagem.
Ainda molhados pela chuva que os acompanhou por toda jornada, chegaram até a sala. Olhares entre mãe e filha se cruzaram. Outro abraço longo, outras lágrimas... desta vez o amor cercava a família inteira.
O homem pediu à criada, que estava ainda junto a patroa, que cuidasse do menino, e que lhe desse roupas secas; quando eles se afastaram, falou:
– Hoje, aprendi com um menino que não conheço que existem coisas mais importantes que dinheiro. Vou mudar meu modo de vida, dar mais atenção para vocês. Espero que me perdoem por todos estes anos.
A mãe, entre soluços, pedia perdão à família, quando a filha interrompeu:
– Desculpem, mas tenho muita coisa para dizer para vocês, – e pausadamente, entre soluços, confessou: Eu fugi de casa porque queria morrer. Estou grávida. Sabia que vocês não aceitariam esse fato. Fui até a ponte para acabar com minha vida. Já ia pôr fim a tudo quando ouvi uma voz que parecia brotar do meu próprio coração. Essa voz era desse menino, que não sei como apareceu depois ali com o papai.
Uma vez ele me disse que Jesus me amava, que salvaria minha família se ela procurasse a Deus. Eu lhe dava comida quando ele aparecia no jardim de casa. Por muitas vezes conversamos. Sempre me sentia bem ouvindo o que ele dizia. Não sei o que farão vocês, agora, mas espero que me perdoem.
Os pais levaram a filha para o quarto a fim de que ela trocasse de roupa. Havia harmonia de perdão e paz, depois de muito tempo nessa família.
Reunidos à mesa para comemorar o reencontro, pediram à criada que fossem chamar o menino para compartilhar da alegria que sentiam naquele momento.
– Senhor – adiantou a criada –, ainda há pouco fui ver se ele estava precisando alguma coisa e só achei no quarto as roupas que o senhor lhe emprestou. As dele sumiram.
Quem passasse por aquela rua, naquele momento, poderia ver a silhueta de um menino magrinho, vestindo trapos, descalço, mas que certamente levava amor e felicidade para todos aqueles que cruzassem seu caminho.
Pr. Ajorge

ajorgefs@gmail.com

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Procura


Segunda parte
O menino, percebendo que a esperança e a aflição emolduravam-lhe o rosto, prosseguiu sem demora:
– Ela estava só, sim senhor, mas não sei para onde foi. Sei que estava muito triste, pois quando tentou sorrir para mim, não conseguiu disfarçar o choro que a atormentava.
–  Em que direção ela foi?
Tentando outra vez ocultar a tosse, desta vez com pedaço de pano velho, informou:
– Ela desceu a rua para aquelas bandas – disse apontando a direção com a mão; é bem provável que tenha ido para uma praça que tem ali mais adiante.
O homem enxugou com o lenço os poucos cabelos que tinha na cabeça. Olhando para o rosto pálido, emagrecido daquela criança, viu que a expressão de seus olhos traduzia um olhar que não era comum aos meninos de rua.
–  Onde moras?
–  Por aí!
–  Não tens casa?
–  Tenho sim, onde paro, aí é minha casa.
Mais uma vez, a expressão dos olhos daquela criança incomodou o homem que o argüia. Havia algo diferente naquele olhar.
Não havia tristeza, não havia revolta... transmitia paz.
O menino olhou para o homem que estava em pé diante de si; levantando-se devagar, ao mesmo tempo em que tossia, envolveu o corpo com os próprios braços à altura do peito, tentando agasalhar-se do frio:
–  O senhor é o pai dela, não é?
–  Sou sim –, respondeu de pronto. – Como sabes?
–  O senhor apareceu no jardim uma das vezes em que ela me dava de comer. Achei estranho e não entendi o comentário que fez: “Apesar de tudo gosto muito do meu pai”.
Quem tossiu desta vez foi o homem tentando disfarçar o embaraço inesperado.
–  Podes me ajudar a procurá-la?
Um movimento afirmativo com a cabeça respondeu a pergunta. Colocando a mão sobre os ombros do menino, conduziu-o até o carro.
A pequena luz que se acendeu no teto do veículo, ao abrir a porta, iluminou um confortável e espaçoso banco de couro. Hesitou em sentar-se. Suas vestes molhadas o incomodavam. O homem, pressentindo, tirou seu casaco, envolveu a criança, que agradeceu com um tênue sorriso.
Percebendo a indecisão do motorista, o menino falou:
– A praça é logo ali depois de dois quarteirões, dobrando à direita.
O veículo deu partida lentamente.
Após alguns minutos, sua luz forte iluminou o local indicado. As gotas da chuva insistente teimavam em cair brilhando incandescidas frente ao farol do carro que estacionou.
O lugar estava soturno. Não se via ninguém. Nada se movia. Apenas um rato que correu pela vala perdeu-se na escuridão de um esgoto fétido.
O menino opinou:
– Vamos perguntar por ela na gruta.
–  Na gruta? – perguntou o pai assustado.
– Logo ali depois daquele bambual existe uma. Quando chove o pessoal se refugia lá.
–  Não acredito que minha filha possa estar lá! Ela jamais acompanharia pessoas que não conhecesse. A não ser...
–  A não ser que tenha sido levada à força – completou o garoto.
–  Com o namorado ela não está. Falei com ele e seu pai antes de sair de casa. Ficaram ambos preocupados, aflitos. Estão também procurando na casa de amigos. Já deram queixa à polícia.
Os dois andaram em direção à gruta desviando-se das muitas poças d’água acumuladas no caminho. Chegaram a uma construção rústica de cimento e pedras que imitava uma caverna. Contrastando com a escuridão intensa de seu interior, pequenas brasas de cigarros eventualmente aumentavam seus brilhos de modo intermitente. Pararam hesitantes. Com uma lanterna o homem focou em direção às brasas. Um grupo de adolescentes, sentado no chão, permaneceu imóvel. Alguns tentaram encobrir os rostos com as mãos. Dentre eles uma voz rouca se fez ouvir:
–  Qual é a tua? Apaga essa droga! Somos do bem... Não fizemos nada.
–  Não queremos nada de vocês, apenas uma informação. Viram uma moça alta, morena, cabelos negros, longos, andando pela praça, hoje no final da tarde?
Com ar de deboche, a mesma voz rouca e pesada retrucou:
–  Se visse alguém assim a teria pedido em casamento, otário. Te manda, mas antes deixa alguma grana.
O homem percorreu o interior da gruta com o foco da lanterna procurando iluminar cada um dos presentes. Na mão de uma menina que aparentava uns doze anos, reconheceu a bolsa da filha.
–  Garota – exclamou –, onde arrumaste essa bolsa?
–  Ganhei, otário, ganhei...
O homem irritou-se. Ao tentar aproximar-se da menina, foi contido pelo seu pequeno acompanhante.
–  Fiquei aqui, doutor, não se precipite.
O homem conteve-se. O menino caminhou até a roda dos adolescentes; conversou alguns minutos com o líder deles. Voltou em seguida.
– Vamos embora, sua filha não está aqui. Aquela garota só lhe tomou a bolsa. Não sabe para onde ela foi.
Já era tarde da noite. A chuva continuava. O menino, mesmo agasalhado com o blazer, tremia de frio. Voltaram ao carro. O motorista recebeu ordens de regressar para casa. No caminho, indagou:
–  Por que não me deixaste falar com aquela menina? Ela teria dito o paradeiro da minha filha.
Tentando enxugar o rosto com as mangas do agasalho, o garoto, trêmulo de frio, falou:
–  Doutor, se o senhor tivesse se aproximado daquela menina, com certeza estaria morto agora. A maioria deles estava armada com estiletes. O que falou com o senhor tinha uma pistola nas mãos. Eu o conheço. Já matou algumas pessoas assaltando. Ele se gaba de ter cobertura de alguns policiais com os quais divide o que rouba.
–  O que disseram então?
–  Que o senhor tomasse conta melhor de sua filha. Que, se não saísse logo, iriam fritá-lo.
O homem olhou firme nos olhos do garoto. A sinceridade da reposta deixou-o irritado.
–  Quem são esses pivetes para me ensinarem como devo cuidar de minha filha? O que eles sabem a respeito de cuidados de pais?
–  Não se irrite, senhor! Não se irrite! Só quem sabe se a sua filha está sendo criada do modo certo é, na verdade, o senhor mesmo, sua esposa e a própria menina..., além de Deus, é claro. Vamos procurá-la em outros lugares que conheço; com certeza, a encontraremos.
O homem ajeitou-se no banco do carro, pensou um pouco. Tentou justificar-se:
–  Esses filhos de hoje são rebeldes. Não respeitam os pais, fazem o que querem. Sempre trabalhei duro para dar-lhes conforto. Nunca lhes faltou nada.
O menino, atento às palavras proferidas, procurava abafar a tosse para não interrompê-lo.
– Senhor! – exclamou – uma vez, na Igreja que freqüento, um pastor falou de mordomia...
O homem bruscamente interveio:
–  Sou político... Trabalho em Brasília... Será que teu pastor conhece mais de mordomia do que eu?
O menino sorriu levemente. Apertando as mãos uma contra outra para esquentar-se, com brandura, disse:
–  Desculpe-me, senhor, mas o pastor falou na igreja, não desta mordomia cujo significado foi denegrido, deturpado pelos políticos de maneira geral. Ele falou de mordomia cristã. Não somos donos de nada, tudo pertence a Deus, mesmo os filhos. Apenas tomamos conta para Ele. Somos, portanto, seus mordomos.
O carro entrou na residência quando o portão se abriu automaticamente. Depois de percorrer o caminho entre os jardins, parou na garagem.
– Vem te enxugar, trocar de roupa. Vem depois tomar alguma coisa quente. Acharemos também um sedativo para esta tosse. Depois continuaremos a conversa sobre a tal mordomia cristã e a procurar minha filha nesses lugares que dizes conhecer.
O homem entrou na casa pela porta da sala segurando a mão do menino. Acendeu a luz que matizou os lustres de cristal. Sua mulher abriu os olhos. Lentamente sentou-se no sofá em que estivera deitada.
Cobrindo os olhos com as mãos para proteger-se da claridade repentina, tentou identificar quem chegava:
–  Quem está aí? Quem são vocês? O que querem?
A voz trêmula, atropelando palavras, evidenciaram a lentidão de raciocínio acentuada pelo estado de embriaguez daquela mulher.
Irritado, o homem ignorou-a. Ainda segurando na mão do menino seguiu para um quarto. Abriu um guarda-roupas, pegou umas camisas, uma toalha, sem esquecer de um par de chinelos. Voltou-se ao menino:
–  Vão ficar bem grandes, mas por hoje te agasalharás. Toma um banho enquanto providencio leite quente e remédios.
         O menino abriu a porta do banheiro; extasiado com tanto luxo, tomou o banho quente que realmente estava precisando.
         A doméstica entrou na sala levando nas mãos uma xícara de café amargo. Agachou-se junto ao sofá onde repousava a patroa. Num tom afável, falou:
– Senhora, tome só um pouquinho...Vai fazer-lhe bem.
A mulher, sem dizer uma só palavra, segurou com as mãos trêmulas a xícara, levou à boca; com uma expressão de repúdio tomou apenas alguns goles.
– Senhora – disse a doméstica –, não desanime. A senhora vai encontrar sua filha. Tenho certeza disso.
– Como podes ter certeza de uma coisa dessas? Por acaso tens bola de cristal?
A criada que ainda permanecia de joelhos amparando a patroa no sofá, num gesto de carinho afagou os cabelos da senhora; com um sorriso nos lábios falou:
– Eu não tenho bola de cristal, é verdade, mas tenho algo muito mais firme e mais importante que é a fé em Deus, meu salvador.
Os olhos da senhora procuraram por um momento os da criada. No mesmo instante que uma gota do café manchava seu robe de seda, falou baixinho:
– Queria ter pelo menos um pouquinho de fé.
– A senhora me disse que quando pequena freqüentou uma igreja evangélica. Será que não guardou nenhum ensinamento?
– O que me lembro muito bem é da tristeza de minha mãe quando soube que meu pai nos abandonara. Que passara a morar com uma tal de “irmã” que vivia lá na igreja.
A criada ficou, por um momento, pensativa. Só percebeu a aproximação do patrão quando este interrompeu aquela conversa:
– Vou com este garoto até um lugar onde ele diz que possivelmente encontraremos a menina.
A mãe devolvendo a xícara à criada, comentou:
– Quem é esse menino que pensa que pode encontrar a minha filha? Ele a conhece, pelo menos?
Sem responder, imediatamente dirigiu-se à garagem. O motorista já o esperava. O guri teve que apressar os passos para acompanhar aquele homem. A roupa que vestia, de tão grande, atrapalhava seus movimentos.
Quando os dois desapareceram, a senhora, entre soluços, desabafou para a criada:
– Tu moras conosco desde muito tempo. Acompanhaste até aqui a nossa vida. Praticamente viste minha filha nascer. Bem sabes que já fui feliz...
A mulher continuou o desabafo como que precisasse daquilo para livrar-se de um enorme peso que já não suportava:
“Tive uma infância feliz. Meus pais se gostavam e passeávamos juntos muitas vezes. Conheci muitos lugares sempre com eles por perto. Frequentávamos uma igreja evangélica. Não perdíamos nenhum culto de domingo. Eu gostava de ouvir os louvores, até participei do coral infantil. Quando fiquei mocinha, o comportamento de meu pai mudou. Não foi de repente. Aos poucos ele foi se afastando de minha mãe; também de mim. Um dia, depois de uma longa conversa com minha mãe, ele saiu de casa. Não entendi muito bem na ocasião. Certo dia, tempos depois, ela explicou-me tudo.”
A criada permanecia em silêncio apenas ouvindo a narrativa.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 3 de novembro de 2013

A Procura


Capítulo 4
A Procura
1ª parte

         Reflexos luminosos multicoloridos espargiam dos cristais dos lustres da casa perdendo-se na seda das cortinas. O “Parabéns pra você”, tocado pelo conjunto musical, acompanhado de muitas palmas, dava a impressão perfeita de uma feliz e suntuosa festa de aniversário.
         À cabeceira da mesa, mais parecendo rainha, a homenageada sustenta um sorriso no rosto bonito, encimado por uma tiara de brilhantes. A pele morena contrasta com o vermelho do batom, realçando o brilho do colar de pérolas que a afaga, repousado em seus seios fartos. Quase não se nota o arco-íris refletido na lágrima que teimou em passear-lhe pelo rosto.
         Um grande número de convidados brinda, erguendo taças de champanhe, aos dezoito anos daquela jovem. O vestido rendado, longo, dificulta os abraços dos muitos parentes. Por fim, a fadiga... a vontade de estar só... a ...realidade.
         As escadas que a levam ao seu quarto maltratam mais ainda aquele corpo cansado. Com a imagem refletida no espelho emoldurado com adornos de prata, olhou, temerosa, para dentro de si mesma. Chorou.
         Começou a despir-se lentamente. Os cabelos negros caíram-lhe desalinhados sobre os ombros; ganharam nova forma sem os brilhantes que os sustentavam no alto da cabeça. O etéreo vestido, deslizando até o chão, deu liberdade, exibindo a verdade de seus contornos físicos. Instintivamente, afagou o ventre com as mãos; assustada, jogou-se na cama procurando fugir da realidade da vida.
         Os pensamentos confusos buscavam, no atropelo de sua vida, uma solução para aquela angústia. O ser que carregava no ventre não era culpado por nada. Não podia ser sacrificado. Por outro lado, deixá-lo nascer seria expor ao público a vergonha de uma conduta duvidosa, de um comportamento escuso, que no fundo do coração ela mesma não aprovava.
         O medo da reação dos pais fazia com que em sua testa, gotas pesadas de suor brotassem aos borbotões. A palidez do rosto transmitia a sensação de mal-estar que lhe aumentava a gelidez das mãos. O sono não encontrava pousada naquela alma doente de preocupações.
         Ao despontar do dia, todas as horas marcadas pelo velho relógio, sentinela silencioso, atento no alto da parede do quarto, foram registradas em sua mente, e expostas na vitrine de seus olhos acalentados pela tristeza. A água quente, sempre abundante do chuveiro, lavou-lhe o corpo... não a alma. Envolvida pelo carinho suave da toalha macia que lhe beijava secando-lhe o corpo, caminhou até o “closed”; vestiu-se devagar.
         Desceu as escadas. Na cozinha, sentou-se à mesa. O café estava servido. A abundância de frutas diversas, leite, iogurte, pães, bolos, sucos, geléias e outras iguarias não lhe despertaram o apetite. Na xícara de porcelana apenas “pingou” um pouco de café que mal lhe serviu para molhar os lábios.
– Bom-dia! – Disse-lhe o pai que estava sentado à cabeceira.
– Bom-dia! – retrucou em voz baixa sem lhe dirigir o olhar, que continuou fixo em seu rosto refletido de cabeça para baixo na concha de uma colher de prata.
Tentando conversar com a filha, insistiu.
– Não estás com fome? Comeste tanto assim ontem à noite, no teu aniversário?
Apenas o ruído do leite caindo na própria xícara soou como resposta.
– Nestes últimos dias tenho notado que andas triste, encafifada..., brigaste com o namorado?
Empurrando a cadeira para trás com as pernas, levantou-se devagar:
– Não briguei com ninguém, só estou enjoada.
O pai seguia-a com os olhos quando ela dirigiu-se outra vez às escadas em busca de seu quarto. Tomou o leite, levantou-se da mesa, apanhou a inseparável pasta preta de couro. Dirigiu-se à garagem onde o motorista o esperava.
Já passava do meio dia quando uma mulher, aparentando uns 35 anos, chegou à mesa do café para o desjejum. Sentou-se; tocou uma sineta; imediatamente uma serviçal apresentou-se de pé ao seu lado.
– Diga, senhora!
– Meu marido está em casa?
– Não, senhora, respondeu de pronto a criada.
– E minha filha?
– Desceu, tomou um gole de café, subiu para o quarto; há pouco dirigiu-se ao jardim.
Com a mão trêmula, serviu em uma taça um pouco de suco de tomate. Sorveu-o de um gole. Levantou-se. Do bolso do robe de cetim tirou uma carteira de cigarros. No bar da sala de estar, em um pequeno copo de cristal sem jaça, tomou uma dose de whisky e acendeu um cigarro. Cercada por uma nuvem de fumaça, dirigiu-se ao jardim.
Caminhou até a fonte. A água, que num forte fluxo esguichava para o alto, caía em gotículas esparsas embaladas pela brisa fagueira e constante que soprava.
Dirigiu-se até um coreto. Apenas as flores vermelhas cor de sangue de um bougaville dançavam discretas, sopradas pela mesma brisa que dispersava a água do chafariz. Os bancos estavam vazios.
Andou até a piscina, onde o espelho d’água azul, cristalina, apenas refletiu sua imagem solitária a par com o rosto quente e alegre do sol. A sauna também estava vazia. Na garagem, o Mercedes esporte, da filha, agonizava numa espera enfadonha. De volta ao jardim, fitando a casa imponente de pintura impecável, sentiu por um segundo o amargor da impressão de não ter nada, a não ser a dor pungente do presságio de ter perdido a única filha.
Apressando os passos voltou ao bar da sala. Tomou outra dose de whisky antes de falar com o marido pelo telefone:
– Nossa filha não está em casa. Ela te falou para onde ia?
– Não, não disse! Procura na casa das amigas!
– Ela não tem amigas!
– Já olhaste bem pela casa? No jardim?
– Já procurei-a por toda parte!
– Não demoro. Logo chegarei aí.
O som da ligação cortada impeliu-a a sucessivas doses de whisky.
As horas se arrastavam lentamente diante daquela mulher aflita. Mais um gole... Mais um... Mais um...
Já estava escuro quando a porta da sala se abriu. Um homem entrou, acendeu a luz. Viu a esposa jogada em um sofá de couro, embriagada, com a mão pendente em direção ao chão onde brilhava um copo solitário. Na mesinha ao lado, duas garrafas vazias serviam de testemunhas para aquele quadro muito pouco familiar.
Andou em direção às escadas segurando a pasta preta de couro; dirigiu-se ao seu quarto. Trocou de roupas. Desceu.
Uma empregada da casa, atribulada, apertando as mãos contra o peito, dirigiu-lhe a palavra:
– Senhor, a mocinha saiu de casa sem avisar. Já procuramos por todo canto; não a encontramos. Sua esposa desesperou-se; bebeu demais.
– Ela só quer um motivo para beber... Todos os dias encontra um diferente!
– Senhor! – inquiriu a doméstica – estou preocupada com a menina. O senhor bem sabe que trato dela desde que nasceu... que podemos fazer?
– Tu não podes fazer nada a não ser cuidar da tua patroa. Vou sair e procurá-la. Chama o motorista.
De cabeça baixa, andando devagar como se contasse os próprios passos, desapareceu em direção à cozinha. Minutos depois, segurando uma xícara de chá quente, ajoelhou-se junto à patroa. Gentilmente, chamou-a:
– Senhora... Senhora! Tome um pouquinho de chá. Vai-lhe fazer bem!
Lentamente a mulher abriu os olhos sentou-se no sofá, colocou as mãos na cabeça. Por um instante ficou imóvel.
– Senhora – insistiu a serviçal –, tome um pouquinho de chá. Fiz agora mesmo, vai fazer-lhe bem...
– Onde está minha filha? Já voltou?
A empregada colocou a xícara em cima da mesinha ao lado, segurou as mãos da patroa; afagando-as, falou com bondade:
– Seu marido foi procurá-la. Não vai acontecer nada com a menina. Daqui a pouco os dois vão chegar..., a senhora vai ver!
– Ela me avisou que um dia sumiria de casa... Não acreditei... Não pensei que tivesse coragem.
– Ela vai voltar, tenho certeza. Vou orar... Pedir para Deus protegê-la – referiu a doméstica.
– Será que não sabes que Deus não perde tempo se preocupando com a filha de uma bêbeda?
– Isso não é verdade, Deus se preocupa com todos, o seu amor é infinito. Ele está sempre disposto a nos ajudar... é só pedirmos sinceramente...
– Queria acreditar nessas coisas que acreditas. Quando criança, freqüentei uma igreja evangélica junto com meus pais.
– A senhora não se sentia bem ouvindo a Palavra de Deus? Por que se afastou de lá?
– Porque percebi que meu pai só era bom na igreja. Na frente dos outros era um exemplo, até que fugiu com uma “irmã,” amiga de minha mãe. Desde aí, passei a desacreditar em tudo.
A doméstica, que ainda permanecia de joelhos segurando as mãos da patroa, suspirou fundo, levantou-se devagar, arrumou o avental sobre o vestido e falou:
- Infelizmente, algumas pessoas freqüentam igrejas, participam até de trabalhos evangelísticos, ouvem a Palavra de Deus, mas não a cumprem. Por isso está escrito em Efésios 6.6 “ Não sirvais apenas diante de seus olhos, procurando agradar aos homens, mas como escravos de Cristo, que cumprem de coração a vontade de Deus”. Não basta, portanto, ir à igreja ou falar de Deus; temos que estar com Deus.
A patroa levantou-se num esforço. Cambaleante, caminhou até o bar.
A chuva fina que iniciou a cair tornou a noite mais fria. A luz forte emitida pelos faróis do carro abria espaço na escuridão das ruas. Os olhos atentos do pai buscavam, aflitos, a filha, na esperança de um consolo. De repente, avistou um vulto pequeno de criança, que entre trapos e jornais, procurava agasalhar-se da chuva sob uma marquise. Com um gesto mandou parar o carro. Abriu a porta e saiu. A chuva fina que começava a engrossar embaçava-lhe os óculos, dificultava-lhe a visão. Aproximou-se devagar:
– Menino! – exclamou –, estás aqui há muito tempo?
A criança franzina afastou de seu rosto um pedaço de papelão com o qual procurava proteger-se dos respingos, olhou para o homem que estava de pé a sua frente, e depois de disfarçar uma tosse seca com as mãos, respondeu:
– Sim senhor, já faz algum tempo.
– Por acaso, passou por aqui uma moça morena, cabelos negros, longos, alta...?
– Senhor, a única que passou por aqui foi a moça que mora aqui perto, na casa grande, branca, que tem no jardim um chafariz bonito.
O homem procurou também se esconder da chuva achegando-se para baixo da marquise. Tirou os óculos, enxugou-o com um lenço; recolocando-o no rosto prosseguiu com um brilho de esperanças na face:
– Como sabes onde essa moça mora? Tu a conheces?
– Sim senhor, eu a conheço já faz um tempo. Sempre que passo por lá vejo-a no jardim; ela me dá comida; por várias vezes até conversamos.
– Sabes para onde foi? Ela estava só?
Pr. Antonio Jorge

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