domingo, 24 de novembro de 2013

O Ermitão



Capítulo 5
O Ermitão
Primeira parte

Depois da curva de uma velha e poeirenta estrada que foge de uma cidadezinha do interior, pode-se ver a cerca que limita o sítio de um velho homem. Talvez o mais velho daquelas redondezas.
Pouca gente tenta aproximar-se de lá. Na entrada, um grande portão de madeira, pesado, invariavelmente fechado, sustenta uma advertência escrita em uma placa de zinco já descorada pelo tempo: “NÃO ENTRE”.
A cerca de acapu serpenteia, num abraço perene, um solitário pedaço de terra que se estende por quase um quilômetro. A casa ainda retrata, descuidada, a saudade da mansão que o tempo, aos poucos, cruelmente consumiu quase que prazerosamente.
Em frente à porta de entrada da velha mansão, um poste embolorado ilumina testemunhando, dia a dia, a mesmice daquele lugar.
Sempre pela manhã, bem cedo, o ancião carrega nas mãos trêmulas uma cuia com a qual cuidadosamente asperge milho no terreiro para as poucas, porém gordas galinhas. Dá aos porcos um punhado de mandioca ralada tirada da plantação do próprio sítio, junto com as sobras de algumas frutas.
Um menino franzino, depois de dobrar a curva da estrada, chegou ao velho portão de madeira. Leu a placa, que de maneira hostil, alertava para não entrar. Então gritou:
– Oh de casa!
Por alguns momentos ficou esperando resposta em vão. Insistiu outras vezes. Pôde perceber, depois de um bom tempo, através das frestas da cerca de acapu, um homem trôpego vindo em sua direção.
No alto da cabeça ostentava um chapéu de palha cujas abas, desfiadas, desenhavam uma sombra quadriculada em seu rosto realçando-lhe as rugas. Uma camisa de mangas compridas, exibindo vários remendos, cobria parcialmente a calça desbotada de brim azul. Andava devagar arrastando um par carcomido de sandálias havaianas. Nas mãos, segurava um grosso cajado de madeira que lhe servia não só de arma, mas também de apoio.
O menino calmamente esperou que ele se aproximasse do portão; antes que pudesse dizer alguma coisa, ouviu-o esbravejar:
– Que queres aqui? Por que esses gritos? Vai embora... Vai!
O menino, tentando controlar o nervosismo que o assolara, respondeu gaguejando:
– Desculpe-me senhor. É que vinha passando por aqui e vi aquela mangueira carregada de frutos. Estou com fome. Queria pedir-lhe, pelo menos, uma manga.
Num ímpeto de raiva o velho resmungou ainda mais alto:
– Eu te conheço, moleque. Deves ser um daqueles que, de vez em quando, pulam minha cerca para roubar minhas frutas. Vou avisando logo: se eu pegar algum de vocês aqui dentro, dou uma surra bem dada.
O menino falou com brandura:
– Senhor, me desculpe. Eu não sou daqui. É a primeira vez que venho. O senhor deve estar me confundindo com outro menino.
– Vocês são todos iguais – continuou gritando o velho –, juntam-se em bandos para perturbarem os outros. Realmente nunca te vi, mas deves ser igualzinho aos demais. Nenhum presta, cai fora, vai!
O garoto ainda insistiu:
– Senhor, pelo menos um copo de água... Vim de longe...
– Quero que tu te danes; vai logo embora se não te baixo o cajado agora mesmo.
As lágrimas que caíram dos olhos da criança o velho não viu. Viu apenas que se afastou lentamente com a cabeça baixa, recurvada pela imensa tristeza que sobre ele se abateu.
O ancião voltou ainda resmungando. Entrou na casa. Sentou-se em uma cadeira da sala. Olhou em volta de si como que admirando as paredes que não eram caiadas há muito tempo. Parou os olhos em um único e antigo retrato ali dependurado entre duas rachaduras. Era o de uma mulher jovem, bonita, com um menino no colo. Firmou mais os olhos tentando arrancar, do sorriso da jovem do retrato, talvez uma explicação para sua própria vida.
Retirou o chapéu de palha da cabeça, colocou-o sobre a mesa de tábuas, levantou-se devagar, aproximou-se de uma bilha na cozinha, tomou um gole d’água em um caneco de lata de leite condensado; caminhou até um banco bem debaixo de uma frondosa mangueira. Sentou-se.
Os pensamentos se enfileiravam em sua mente quando uma fruta caiu da árvore bem próxima a seus pés. Instintivamente olhou para o fruto; em seguida, seu olhar voltou-se em direção ao portão. Pôde apenas divisar sobre ele um pequeno pássaro pousado, mas lembrou do rosto pálido e magro do menino que lhe pedira alimento. Juntou a manga, limpou-a na barra da camisa; caminhou lentamente em direção à porteira. Não havia ninguém lá.
A noite desceu mais rápida nesse dia. Acompanhou-a uma tempestade com muito vento. O velho, deitado na cama, apenas se limitava a ouvir os trovões; virava o rosto cada vez que era iluminado por um relâmpago.
De manhã cedo o vento ainda não havia cessado. Com a cuia de milho nas mãos dirigiu-se ao terreiro para alimentar as galinhas. A chuva fina que molhava seu chapéu de palha, beijava-lhe o rosto. Quando juntou a primeira manga para alimentar os porcos, sem querer lembrou-se do menino outra vez. Procurou instintivamente seu vulto no portão.
A neblina e a garoa fina dificultavam-lhe a visão. Caminhava até o chiqueiro quando de repente um vento mais forte tombou uma árvore apodrecida pelos cupins. O velho tentou correr, mas não conseguiu. Um enorme tronco caiu por cima de suas pernas prendendo-o ao chão. Tentou em vão livrar-se. Quanto mais se esforçava para soltar-se, mais suas pernas doíam; suas forças se esgotavam.
A chuva parou de cair. Os primeiros raios do sol começaram a dourar-lhe o rosto. As mãos enlameadas, as unhas quebradas, negras, denunciavam as vãs tentativas que fez para escavar o chão no afã de livrar-se.
Gritou, mesmo sabendo que quase ninguém passava por ali. O último que passara, havia posto para correr, como já fizera com tantos outros.
Lembrou-se do menino que expulsara sem lhe dar comida. Arrependeu-se disso admitindo para si mesmo:
– Esse menino era diferente dos outros. Vi isso nos seus olhos.
Os pensamentos multiplicaram-se soltos na mente. Começou a relembrar de toda a vida. Lágrimas perderam-se no chão açoitado pela chuva. Sentiu que seus últimos momentos haviam chegado. Foi quando ouviu uma voz de criança:
– Senhor, senhor...
O velho abriu os olhos. Diante de si vislumbrou o vulto do menino que maltratara. Não teve coragem de pedir-lhe nada.
A criança abaixou-se entre os galhos da árvore que o prendiam; próximo ao seu rosto falou:
– Vou ver se retiro esse pau de cima de suas pernas.
As tentativas foram muitas, porém inúteis. Era pesado demais.
O velho, vendo o sacrifício da criança fez um esforço. Balbuciou:
– Ontem te neguei água e comida. Hoje queres me ajudar? Quem és tu?
O menino ignorou aquelas palavras. Retrucou:
– O senhor precisa sair logo daí. A cidade está longe, não mora ninguém aqui perto. Temos que dar um jeito.
O velho não entendeu quando o menino se afastou. Muitos pensamentos voltaram a povoar-lhe a mente.
Já admitira ter sido abandonado pelo guri quando o viu se aproximando com dificuldade, arrastando um longo pedaço de madeira.
– Que estás fazendo? Para que é isso?
– Sem dizer uma só palavra, apoiou o pau que trouxera em um outro menor que estava ali perto do homem. Fez uma alavanca. Com um pequeno esforço conseguiu folgar o tronco de cima do homem, que se esforçando, arrastou-se, ficando livre do tormento.
Tentou levantar-se; suas pernas doeram demais. Uma estava quebrada. Voltou os olhos para o garoto. Envergonhado voltou a perguntar:
– Por que estás me ajudando? Não te neguei até água outro dia? Por que não me deixaste aqui para morrer? Como me encontraste?
O menino olhou no rosto do velho; viu em cada uma das rugas que ostentava a marca de um sofrimento imposto pela longa vida. Delicadamente perguntou:
– O senhor já ouviu alguma vez falar de Jesus?
O homem não entendeu o porquê da pergunta. Fixou o olhar naquele pequeno e pálido rosto; insistiu:
Quem tu és? Como me encontraste?
– Senhor – respondeu –, outra hora conversaremos. O senhor precisa chegar até a cidade para cuidar dessa perna. Acho que está quebrada.
O vento começou a soprar forte outra vez. A porta da casa que ficara entreaberta bateu com força. O menino argumentou:
– Vi uma velha carroça debaixo de um alpendre quando estava procurando o caibro para fazer a alavanca.
Espantado com a argúcia do menino, completou:
– No curral tem um cavalo. Será que consegues...
Antes que pudesse completar a frase o garoto afastou-se outra vez; depois de certo tempo voltou guiando a carroça na qual atrelara o cavalo.
Com muita dor, gemendo bastante, o homem conseguiu subir e deitar-se no chão da carroça. Lentamente tomaram a direção do portão pesado de madeira. Após ultrapassá-lo, ganharam a estrada rumando para a cidade.
Os passos do cavalo eram lentos, cadenciados. O sacudir da carroça maltratava o velho homem, que deitado de costas, era também obrigado a receber no rosto os pingos grossos da chuva que como dardos teimavam em fustigar-lhe.
De vez em quando cobria os olhos com a manga da camisa branca parcialmente remendada. Ela se colara ao seu tórax magro e arfante umedecido pelos respingos.
A todo o momento procurava afugentar os pensamentos. Eles lhe crucificavam a mente. Tentando quebrar a monotonia e afastar a dor que sentia pelo corpo todo, dirigiu a palavra ao menino que pacientemente guiava a carroça:
– Ainda não me contaste como me achaste preso naquela árvore.
Sem soltar as rédeas da carroça, mas virando um pouco a cabeça para trás, matou sua curiosidade:
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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