quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Procura


Segunda parte
O menino, percebendo que a esperança e a aflição emolduravam-lhe o rosto, prosseguiu sem demora:
– Ela estava só, sim senhor, mas não sei para onde foi. Sei que estava muito triste, pois quando tentou sorrir para mim, não conseguiu disfarçar o choro que a atormentava.
–  Em que direção ela foi?
Tentando outra vez ocultar a tosse, desta vez com pedaço de pano velho, informou:
– Ela desceu a rua para aquelas bandas – disse apontando a direção com a mão; é bem provável que tenha ido para uma praça que tem ali mais adiante.
O homem enxugou com o lenço os poucos cabelos que tinha na cabeça. Olhando para o rosto pálido, emagrecido daquela criança, viu que a expressão de seus olhos traduzia um olhar que não era comum aos meninos de rua.
–  Onde moras?
–  Por aí!
–  Não tens casa?
–  Tenho sim, onde paro, aí é minha casa.
Mais uma vez, a expressão dos olhos daquela criança incomodou o homem que o argüia. Havia algo diferente naquele olhar.
Não havia tristeza, não havia revolta... transmitia paz.
O menino olhou para o homem que estava em pé diante de si; levantando-se devagar, ao mesmo tempo em que tossia, envolveu o corpo com os próprios braços à altura do peito, tentando agasalhar-se do frio:
–  O senhor é o pai dela, não é?
–  Sou sim –, respondeu de pronto. – Como sabes?
–  O senhor apareceu no jardim uma das vezes em que ela me dava de comer. Achei estranho e não entendi o comentário que fez: “Apesar de tudo gosto muito do meu pai”.
Quem tossiu desta vez foi o homem tentando disfarçar o embaraço inesperado.
–  Podes me ajudar a procurá-la?
Um movimento afirmativo com a cabeça respondeu a pergunta. Colocando a mão sobre os ombros do menino, conduziu-o até o carro.
A pequena luz que se acendeu no teto do veículo, ao abrir a porta, iluminou um confortável e espaçoso banco de couro. Hesitou em sentar-se. Suas vestes molhadas o incomodavam. O homem, pressentindo, tirou seu casaco, envolveu a criança, que agradeceu com um tênue sorriso.
Percebendo a indecisão do motorista, o menino falou:
– A praça é logo ali depois de dois quarteirões, dobrando à direita.
O veículo deu partida lentamente.
Após alguns minutos, sua luz forte iluminou o local indicado. As gotas da chuva insistente teimavam em cair brilhando incandescidas frente ao farol do carro que estacionou.
O lugar estava soturno. Não se via ninguém. Nada se movia. Apenas um rato que correu pela vala perdeu-se na escuridão de um esgoto fétido.
O menino opinou:
– Vamos perguntar por ela na gruta.
–  Na gruta? – perguntou o pai assustado.
– Logo ali depois daquele bambual existe uma. Quando chove o pessoal se refugia lá.
–  Não acredito que minha filha possa estar lá! Ela jamais acompanharia pessoas que não conhecesse. A não ser...
–  A não ser que tenha sido levada à força – completou o garoto.
–  Com o namorado ela não está. Falei com ele e seu pai antes de sair de casa. Ficaram ambos preocupados, aflitos. Estão também procurando na casa de amigos. Já deram queixa à polícia.
Os dois andaram em direção à gruta desviando-se das muitas poças d’água acumuladas no caminho. Chegaram a uma construção rústica de cimento e pedras que imitava uma caverna. Contrastando com a escuridão intensa de seu interior, pequenas brasas de cigarros eventualmente aumentavam seus brilhos de modo intermitente. Pararam hesitantes. Com uma lanterna o homem focou em direção às brasas. Um grupo de adolescentes, sentado no chão, permaneceu imóvel. Alguns tentaram encobrir os rostos com as mãos. Dentre eles uma voz rouca se fez ouvir:
–  Qual é a tua? Apaga essa droga! Somos do bem... Não fizemos nada.
–  Não queremos nada de vocês, apenas uma informação. Viram uma moça alta, morena, cabelos negros, longos, andando pela praça, hoje no final da tarde?
Com ar de deboche, a mesma voz rouca e pesada retrucou:
–  Se visse alguém assim a teria pedido em casamento, otário. Te manda, mas antes deixa alguma grana.
O homem percorreu o interior da gruta com o foco da lanterna procurando iluminar cada um dos presentes. Na mão de uma menina que aparentava uns doze anos, reconheceu a bolsa da filha.
–  Garota – exclamou –, onde arrumaste essa bolsa?
–  Ganhei, otário, ganhei...
O homem irritou-se. Ao tentar aproximar-se da menina, foi contido pelo seu pequeno acompanhante.
–  Fiquei aqui, doutor, não se precipite.
O homem conteve-se. O menino caminhou até a roda dos adolescentes; conversou alguns minutos com o líder deles. Voltou em seguida.
– Vamos embora, sua filha não está aqui. Aquela garota só lhe tomou a bolsa. Não sabe para onde ela foi.
Já era tarde da noite. A chuva continuava. O menino, mesmo agasalhado com o blazer, tremia de frio. Voltaram ao carro. O motorista recebeu ordens de regressar para casa. No caminho, indagou:
–  Por que não me deixaste falar com aquela menina? Ela teria dito o paradeiro da minha filha.
Tentando enxugar o rosto com as mangas do agasalho, o garoto, trêmulo de frio, falou:
–  Doutor, se o senhor tivesse se aproximado daquela menina, com certeza estaria morto agora. A maioria deles estava armada com estiletes. O que falou com o senhor tinha uma pistola nas mãos. Eu o conheço. Já matou algumas pessoas assaltando. Ele se gaba de ter cobertura de alguns policiais com os quais divide o que rouba.
–  O que disseram então?
–  Que o senhor tomasse conta melhor de sua filha. Que, se não saísse logo, iriam fritá-lo.
O homem olhou firme nos olhos do garoto. A sinceridade da reposta deixou-o irritado.
–  Quem são esses pivetes para me ensinarem como devo cuidar de minha filha? O que eles sabem a respeito de cuidados de pais?
–  Não se irrite, senhor! Não se irrite! Só quem sabe se a sua filha está sendo criada do modo certo é, na verdade, o senhor mesmo, sua esposa e a própria menina..., além de Deus, é claro. Vamos procurá-la em outros lugares que conheço; com certeza, a encontraremos.
O homem ajeitou-se no banco do carro, pensou um pouco. Tentou justificar-se:
–  Esses filhos de hoje são rebeldes. Não respeitam os pais, fazem o que querem. Sempre trabalhei duro para dar-lhes conforto. Nunca lhes faltou nada.
O menino, atento às palavras proferidas, procurava abafar a tosse para não interrompê-lo.
– Senhor! – exclamou – uma vez, na Igreja que freqüento, um pastor falou de mordomia...
O homem bruscamente interveio:
–  Sou político... Trabalho em Brasília... Será que teu pastor conhece mais de mordomia do que eu?
O menino sorriu levemente. Apertando as mãos uma contra outra para esquentar-se, com brandura, disse:
–  Desculpe-me, senhor, mas o pastor falou na igreja, não desta mordomia cujo significado foi denegrido, deturpado pelos políticos de maneira geral. Ele falou de mordomia cristã. Não somos donos de nada, tudo pertence a Deus, mesmo os filhos. Apenas tomamos conta para Ele. Somos, portanto, seus mordomos.
O carro entrou na residência quando o portão se abriu automaticamente. Depois de percorrer o caminho entre os jardins, parou na garagem.
– Vem te enxugar, trocar de roupa. Vem depois tomar alguma coisa quente. Acharemos também um sedativo para esta tosse. Depois continuaremos a conversa sobre a tal mordomia cristã e a procurar minha filha nesses lugares que dizes conhecer.
O homem entrou na casa pela porta da sala segurando a mão do menino. Acendeu a luz que matizou os lustres de cristal. Sua mulher abriu os olhos. Lentamente sentou-se no sofá em que estivera deitada.
Cobrindo os olhos com as mãos para proteger-se da claridade repentina, tentou identificar quem chegava:
–  Quem está aí? Quem são vocês? O que querem?
A voz trêmula, atropelando palavras, evidenciaram a lentidão de raciocínio acentuada pelo estado de embriaguez daquela mulher.
Irritado, o homem ignorou-a. Ainda segurando na mão do menino seguiu para um quarto. Abriu um guarda-roupas, pegou umas camisas, uma toalha, sem esquecer de um par de chinelos. Voltou-se ao menino:
–  Vão ficar bem grandes, mas por hoje te agasalharás. Toma um banho enquanto providencio leite quente e remédios.
         O menino abriu a porta do banheiro; extasiado com tanto luxo, tomou o banho quente que realmente estava precisando.
         A doméstica entrou na sala levando nas mãos uma xícara de café amargo. Agachou-se junto ao sofá onde repousava a patroa. Num tom afável, falou:
– Senhora, tome só um pouquinho...Vai fazer-lhe bem.
A mulher, sem dizer uma só palavra, segurou com as mãos trêmulas a xícara, levou à boca; com uma expressão de repúdio tomou apenas alguns goles.
– Senhora – disse a doméstica –, não desanime. A senhora vai encontrar sua filha. Tenho certeza disso.
– Como podes ter certeza de uma coisa dessas? Por acaso tens bola de cristal?
A criada que ainda permanecia de joelhos amparando a patroa no sofá, num gesto de carinho afagou os cabelos da senhora; com um sorriso nos lábios falou:
– Eu não tenho bola de cristal, é verdade, mas tenho algo muito mais firme e mais importante que é a fé em Deus, meu salvador.
Os olhos da senhora procuraram por um momento os da criada. No mesmo instante que uma gota do café manchava seu robe de seda, falou baixinho:
– Queria ter pelo menos um pouquinho de fé.
– A senhora me disse que quando pequena freqüentou uma igreja evangélica. Será que não guardou nenhum ensinamento?
– O que me lembro muito bem é da tristeza de minha mãe quando soube que meu pai nos abandonara. Que passara a morar com uma tal de “irmã” que vivia lá na igreja.
A criada ficou, por um momento, pensativa. Só percebeu a aproximação do patrão quando este interrompeu aquela conversa:
– Vou com este garoto até um lugar onde ele diz que possivelmente encontraremos a menina.
A mãe devolvendo a xícara à criada, comentou:
– Quem é esse menino que pensa que pode encontrar a minha filha? Ele a conhece, pelo menos?
Sem responder, imediatamente dirigiu-se à garagem. O motorista já o esperava. O guri teve que apressar os passos para acompanhar aquele homem. A roupa que vestia, de tão grande, atrapalhava seus movimentos.
Quando os dois desapareceram, a senhora, entre soluços, desabafou para a criada:
– Tu moras conosco desde muito tempo. Acompanhaste até aqui a nossa vida. Praticamente viste minha filha nascer. Bem sabes que já fui feliz...
A mulher continuou o desabafo como que precisasse daquilo para livrar-se de um enorme peso que já não suportava:
“Tive uma infância feliz. Meus pais se gostavam e passeávamos juntos muitas vezes. Conheci muitos lugares sempre com eles por perto. Frequentávamos uma igreja evangélica. Não perdíamos nenhum culto de domingo. Eu gostava de ouvir os louvores, até participei do coral infantil. Quando fiquei mocinha, o comportamento de meu pai mudou. Não foi de repente. Aos poucos ele foi se afastando de minha mãe; também de mim. Um dia, depois de uma longa conversa com minha mãe, ele saiu de casa. Não entendi muito bem na ocasião. Certo dia, tempos depois, ela explicou-me tudo.”
A criada permanecia em silêncio apenas ouvindo a narrativa.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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