A suicida
Parte II
O silêncio voltou a reinar na praça. Um vulto ágil, de
arma em punho, desapareceu nas sombras. Um corpo jovem de mulher agonizava no
chão envolto em sangue.
O menino ajoelhou-se frente ao corpo;
suas mãos afastaram daquele rosto os cabelos longos que lhe encobriam
parcialmente a face. Recebeu um olhar de súplica. Arfante, ela deixou escapar
de seus lábios algumas palavras:
– Acho que poderíamos ser bons amigos:
eu, tu e teu Deus... já que Ele anda sempre contigo!
Seremos ainda – disse rapidamente o
menino. Ele está aqui conosco agora. Fica tranquila, vou pedir ajuda.
Alguns minutos depois uma ambulância
transportava aquela jovem para um hospital. A cirurgia foi delicada. O projétil
se alojara muito próximo da coluna. O risco de uma paralisia era grande.
No dia seguinte, ao abrir os olhos,
apesar da visão turvada pelo efeito de remédios, ela conseguiu divisar o rosto
de sua mãe. Após algum tempo de silêncio, tentando entender o que estava
acontecendo, num sussurro quase inaudível, perguntou:
– Onde estou? Que está acontecendo
aqui?
Aquela senhora, aparentando uns
quarenta anos, pele morena, cabelos negros, muito lisos, caídos até os ombros,
estendeu a mão, e afagando aquele rosto bonito, mas triste da moça, num soluço
deixou emergir um desabafo que, com certeza, brotou-lhe do coração:
– Que te fizeram, minha filha? Jamais
pensei encontrar-te nesta situação! Quando telefonaram aqui do hospital, quase
que não acreditei. A sorte foi que um menino entregou a tua bolsa para um
médico. Lá estavam tua identidade e endereço. Ele falou que foi um assalto.
As pálpebras da moça, emolduradas por
longas pestanas arqueadas, esconderam aqueles olhos negros quase sem brilho,
deixando-lhe no rosto um ar melancólico.
Devagar, a mãe segurou as mãos frias da
moça, apertou-as contra o próprio peito, como se quisesse mergulhá-las em seu
coração. Seus pensamentos transformaram-se em palavras sussurradas
pausadamente:
– Minha filha, quisera começar tudo de novo. Gostaria
de voltar ao dia em que, pela primeira vez, te amamentei no seio. Cresceste
rápido, talvez rápido demais. Os anos te transformaram na moça bonita que és
hoje. Não percebi o dia em que começamos a nos afastar. Os presentes caros, a
casa rica, os muitos vestidos, joias não foram suficientes para nos manter
unidas. O trabalho incessante de teu pai contribuiu para nos desagregar, mas
tenho a impressão que desde o início faltou algo em nossa família; agora talvez
seja tarde para descobrir.
A moça abriu os olhos devagar, apertou levemente as
mãos da mãe que seguravam as suas, e perguntou:
– Onde está o menino que me defendeu quando fui
assaltada? Acho que ele gostou de mim...
– Eu também gosto muito de ti minha filha! Teu pai
deve estar chegando. Está preocupado contigo. Com certeza vai te trazer um bom
presente.
– O único presente que quero agora é
ver meu amigo. Consiga isso para mim...
– Como vou encontrar esse menino se nem
ao menos o conheço e não sei onde mora?
– É só olhar bem dentro dos olhos dele
que a senhora o reconhece. Os cabelos são negros, a pele é pálida, mas a
expressão de seu rosto magro transmite paz, a mesma que eu gostaria de ter para
dividir em casa com vocês.
O silêncio voltou a tomar conta do
quarto do hospital. As duas trocaram um olhar amigo como nunca haviam feito. Um
sorriso de recomeço aproximou um pouco aqueles corações.
– Esse menino... já o conhecias antes?
– Não, mãe, foi a primeira vez que o
vi! Eu estava muito triste, pensando em sumir da vida. Ele falou-me que era
amigo de Deus. Senti sinceridade em suas palavras. Não sei por que nem como,
mas ele transmitia paz, também tranqüilidade.
– Não perguntaste onde ele morava?
– Claro, mas disse-me que onde parava
era sua casa.
– Ele não estava com alguém ou com um
colega?
– Não! Estava sozinho, ou melhor, disse
que Deus era seu amigo e estava sempre com ele.
A mãe esboçou um sorriso fugaz.
Deslizou a mão pelos cabelos longos da filha tentando arrumá-los.
– Filha, em poucos dias voltaremos para
casa. Vai ser tudo diferente, eu te prometo!
A porta do quarto abriu-se. Um homem
aparentando quarenta anos, cabelos não tão grisalhos e marcados com a
preocupação do tempo, entrou forçando um sorriso.
– Trouxe um presente, minha filha, acho
que vais gostar!
– A moça instintivamente olhou no rosto
da mãe que não lhe recusou um sorriso “amarelo”. Em seguida, voltando-se para o
pai, indagou:
– Será que vai começar tudo de novo?
O homem ficou sem entender nada.
Caminhou até a filha e entregou-lhe uma caixa pequena, cuidadosamente
embrulhada para presente.
– Tenho certeza de que vais gostar,
abre!
– Pai, será que dentro desta caixinha
está todo o amor que o senhor diz sentir por mim? Será que neste pacote está
também o tempo que gostaria de ter estado com o senhor, conversando, brincando,
sorrindo? Será que aqui dentro estará também embrulhado aquele passeio que eu
gostaria de ter feito com o senhor, de mãos dadas por alguma praça, onde o
senhor iria me ensinar as coisas da vida, que até agora não aprendi e por isso
me machuquei nos meus relacionamentos do dia-a-dia? Será, papai? Ou será mais
uma joia cara que irá juntar-se a tantas outras que, inúteis, se empoeiram
naquele cofre cretino que também guarda muitos de seus segredos? Ainda não
reparou que não uso as joias que o senhor me dá?
O silêncio instalado no ar confundiu-se
com a tristeza, que em forma de lágrima, desceu cascateando pelo rosto atônito
daquele homem. Com a voz embargada, lábios trêmulos, deixou escapar a palavra
perdão fugida de sua alma para agasalhar-se profundamente no coração da moça.
Tens
razão minha filha...tens razão. De agora em diante, vamos procurar ser
realmente uma família de verdade.
– Uma família – repetiu a moça – é o presente que mais
eu gostaria de receber e ser feliz como o garoto que me salvou a vida.
– Como
sabes que ele era feliz?
– Eu
senti isso nele; por isso no início eu o agredi com palavras, pois o invejei. A
felicidade dele vinha de um seu amigo inseparável que ele dizia ser Deus.
– Tens
razão, minha filha. A dor que senti quando pensei que fosses nos deixar para
sempre, me fez refletir bastante. Teu colega tinha razão, a felicidade vem de
Deus. Precisamos buscá-Lo juntos, fazê-Lo nosso amigo também.
A porta
do quarto entreabriu-se devagar. Através dela, um menino magro, cabelos negros
e rosto pálido, ouvindo aquelas palavras, voltou sem nada dizer. Carregou para
as ruas apenas um sorriso de contentamento. Fez-se mais feliz.
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com