segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A suicida


A suicida
Parte II

O silêncio voltou a reinar na praça. Um vulto ágil, de arma em punho, desapareceu nas sombras. Um corpo jovem de mulher agonizava no chão envolto em sangue.
         O menino ajoelhou-se frente ao corpo; suas mãos afastaram daquele rosto os cabelos longos que lhe encobriam parcialmente a face. Recebeu um olhar de súplica. Arfante, ela deixou escapar de seus lábios algumas palavras:
         – Acho que poderíamos ser bons amigos: eu, tu e teu Deus... já que Ele anda sempre contigo!
         Seremos ainda – disse rapidamente o menino. Ele está aqui conosco agora. Fica tranquila, vou pedir ajuda.
         Alguns minutos depois uma ambulância transportava aquela jovem para um hospital. A cirurgia foi delicada. O projétil se alojara muito próximo da coluna. O risco de uma paralisia era grande.
         No dia seguinte, ao abrir os olhos, apesar da visão turvada pelo efeito de remédios, ela conseguiu divisar o rosto de sua mãe. Após algum tempo de silêncio, tentando entender o que estava acontecendo, num sussurro quase inaudível, perguntou:
         – Onde estou? Que está acontecendo aqui?
         Aquela senhora, aparentando uns quarenta anos, pele morena, cabelos negros, muito lisos, caídos até os ombros, estendeu a mão, e afagando aquele rosto bonito, mas triste da moça, num soluço deixou emergir um desabafo que, com certeza, brotou-lhe do coração:
         – Que te fizeram, minha filha? Jamais pensei encontrar-te nesta situação! Quando telefonaram aqui do hospital, quase que não acreditei. A sorte foi que um menino entregou a tua bolsa para um médico. Lá estavam tua identidade e endereço. Ele falou que foi um assalto.
         As pálpebras da moça, emolduradas por longas pestanas arqueadas, esconderam aqueles olhos negros quase sem brilho, deixando-lhe no rosto um ar melancólico.
         Devagar, a mãe segurou as mãos frias da moça, apertou-as contra o próprio peito, como se quisesse mergulhá-las em seu coração. Seus pensamentos transformaram-se em palavras sussurradas pausadamente:
– Minha filha, quisera começar tudo de novo. Gostaria de voltar ao dia em que, pela primeira vez, te amamentei no seio. Cresceste rápido, talvez rápido demais. Os anos te transformaram na moça bonita que és hoje. Não percebi o dia em que começamos a nos afastar. Os presentes caros, a casa rica, os muitos vestidos, joias não foram suficientes para nos manter unidas. O trabalho incessante de teu pai contribuiu para nos desagregar, mas tenho a impressão que desde o início faltou algo em nossa família; agora talvez seja tarde para descobrir.
A moça abriu os olhos devagar, apertou levemente as mãos da mãe que seguravam as suas, e perguntou:
– Onde está o menino que me defendeu quando fui assaltada? Acho que ele gostou de mim...
– Eu também gosto muito de ti minha filha! Teu pai deve estar chegando. Está preocupado contigo. Com certeza vai te trazer um bom presente.
         – O único presente que quero agora é ver meu amigo. Consiga isso para mim...
         – Como vou encontrar esse menino se nem ao menos o conheço e não sei onde mora?
         – É só olhar bem dentro dos olhos dele que a senhora o reconhece. Os cabelos são negros, a pele é pálida, mas a expressão de seu rosto magro transmite paz, a mesma que eu gostaria de ter para dividir em casa com vocês.
         O silêncio voltou a tomar conta do quarto do hospital. As duas trocaram um olhar amigo como nunca haviam feito. Um sorriso de recomeço aproximou um pouco aqueles corações.
         – Esse menino... já o conhecias antes?
         – Não, mãe, foi a primeira vez que o vi! Eu estava muito triste, pensando em sumir da vida. Ele falou-me que era amigo de Deus. Senti sinceridade em suas palavras. Não sei por que nem como, mas ele transmitia paz, também tranqüilidade.
         – Não perguntaste onde ele morava?
         – Claro, mas disse-me que onde parava era sua casa.
         – Ele não estava com alguém ou com um colega?
         – Não! Estava sozinho, ou melhor, disse que Deus era seu amigo e estava sempre com ele.
         A mãe esboçou um sorriso fugaz. Deslizou a mão pelos cabelos longos da filha tentando arrumá-los.
         – Filha, em poucos dias voltaremos para casa. Vai ser tudo diferente, eu te prometo!
         A porta do quarto abriu-se. Um homem aparentando quarenta anos, cabelos não tão grisalhos e marcados com a preocupação do tempo, entrou forçando um sorriso.
         – Trouxe um presente, minha filha, acho que vais gostar!
         – A moça instintivamente olhou no rosto da mãe que não lhe recusou um sorriso “amarelo”. Em seguida, voltando-se para o pai, indagou:
         – Será que vai começar tudo de novo?
         O homem ficou sem entender nada. Caminhou até a filha e entregou-lhe uma caixa pequena, cuidadosamente embrulhada para presente.
         – Tenho certeza de que vais gostar, abre!
         – Pai, será que dentro desta caixinha está todo o amor que o senhor diz sentir por mim? Será que neste pacote está também o tempo que gostaria de ter estado com o senhor, conversando, brincando, sorrindo? Será que aqui dentro estará também embrulhado aquele passeio que eu gostaria de ter feito com o senhor, de mãos dadas por alguma praça, onde o senhor iria me ensinar as coisas da vida, que até agora não aprendi e por isso me machuquei nos meus relacionamentos do dia-a-dia? Será, papai? Ou será mais uma joia cara que irá juntar-se a tantas outras que, inúteis, se empoeiram naquele cofre cretino que também guarda muitos de seus segredos? Ainda não reparou que não uso as joias que o senhor me dá?
         O silêncio instalado no ar confundiu-se com a tristeza, que em forma de lágrima, desceu cascateando pelo rosto atônito daquele homem. Com a voz embargada, lábios trêmulos, deixou escapar a palavra perdão fugida de sua alma para agasalhar-se profundamente no coração da moça.
         Tens razão minha filha...tens razão. De agora em diante, vamos procurar ser realmente uma família de verdade.
– Uma família – repetiu a moça – é o presente que mais eu gostaria de receber e ser feliz como o garoto que me salvou a vida.
         – Como sabes que ele era feliz?
         – Eu senti isso nele; por isso no início eu o agredi com palavras, pois o invejei. A felicidade dele vinha de um seu amigo inseparável que ele dizia ser Deus.
         – Tens razão, minha filha. A dor que senti quando pensei que fosses nos deixar para sempre, me fez refletir bastante. Teu colega tinha razão, a felicidade vem de Deus. Precisamos buscá-Lo juntos, fazê-Lo nosso amigo também.
         A porta do quarto entreabriu-se devagar. Através dela, um menino magro, cabelos negros e rosto pálido, ouvindo aquelas palavras, voltou sem nada dizer. Carregou para as ruas apenas um sorriso de contentamento. Fez-se mais feliz.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 20 de outubro de 2013

A Suicida


Capítulo 3
A suicida
Parte I

O garoto magrinho andou pelas ruas até que encontrou o sossego de uma praça. Cansado, faminto, procurou paciente um banco para sentar. Anoitecia. Casais de namorados ocupavam a maior parte deles. Sob a ramagem de uma touceira de bambu, divisou uma moça solitária e aproximou-se:
– Posso sentar um pouquinho com você?
        Ela permaneceu imóvel, calada. Com os olhos fitos em algum lugar distante, seus pensamentos, certamente, deslizavam em paragens longínquas, aliados a algum sofrimento profundo. O vento que lhe acariciava o rosto tripudiava de seus longos cabelos negros deixando-os em desalinho. A maquiagem, desfeita por muitas lágrimas incontidas, não conseguia esconder mais a tristeza daquela alma.
        O menino sentou-se devagar no banco. Olhou para a moça e entristeceu-se. Ela, percebendo-o, indagou:
        – Que queres aqui, moleque? Não se pode ficar mais sozinha em uma praça? Sai daqui, sai!
        A criança sentiu naqueles olhos negros que o fitavam a mágoa e a dor de uma profunda solidão. Retrucou:
– Não será por estar sozinha que você está tão triste?
        – Que sabes da minha vida, moleque, para que dês palpite? Vê se não amola!
        Sem dar ouvidos aos insultos, retirou, de uma pequena sacola que carregava, um pedaço de pão. Partiu-o ao meio; num gesto de carinho, estendeu a mão para a moça:
        – Aceita?
        Afastando grosseiramente de si a mão que lhe ofertava o alimento, bravejou:
        – Achas mesmo que vou aceitar pão sujo de um pivete como tu?
        – Desculpe-me, moça, Não quis ofendê-la; queria apenas ser seu amigo, conversar um pouquinho.
        O vento frio embalava metódico as copas das árvores da praça. As luzes dos postes se acenderam. Poucos transeuntes já se faziam presentes no local.
        – Escuta aqui, guri – falou a moça: quantos anos tens?
        – Já tenho 10 – respondeu tentando esboçar um sorriso amável.
        – Tens casa? Onde moras? – Indagou quebrando um pouco a rispidez da voz.
        – Por aí, moça. Onde paro é minha casa.
        – Não tens medo de andar sozinho pelas ruas?
        – Eu não ando sozinho, moça, Deus me protege. E você, onde vive?
        O peso da solidão agigantou a tristeza da jovem, que fitando o rosto pálido e magro daquela criança, soluçou:
        Moro perto daqui, mas não volto mais lá. Nem para lugar algum...
        – É muito ruim ter uma casa para morar?
        – Eu queria mesmo era uma família. Acho que nunca tive, apesar de morar com pai e mãe dentro de uma casa enorme e rica.
        A criança ajustou com as mãos a blusa fina que lhe envolvia o peito, tentando agasalhar-se do frio, baixou-as, e, segurando as da moça, timidamente balbuciou:
        – Será que em uma casa grande, bonita, não cabem paz, amor, felicidade?
        Retirando as mãos da criança da sua, indagou num repente:
        – Que sabes de felicidade ou paz? Não vives nas ruas?
        – É verdade, o mundo é minha casa, mas sou feliz. Tenho um amigo que não me larga um só momento.
        – Mas agora estás só. Não vejo ninguém contigo.
        – Já lhe disse moça, ando com Deus. Ele é meu amigo; por isso sou feliz, tenho paz. Feliz porque vivo em harmonia com esse Deus maravilhoso, o mesmo que criou os céus e a terra.
        – Já ouvi falar desse teu Deus, mas nunca ninguém me apresentou a Ele. Agora é tarde... acho que és a última pessoa que conheci.
        O menino levantou do banco, postou-se em pé bem em frente à moça. Olhou-a fixamente no rosto por alguns instantes, sem dizer uma só palavra. Ela inquietou-se:
        – Que foi? Que estás olhando?
– Nunca lhe passou pela cabeça que Deus ama você? Ninguém lhe disse, alguma vez, que Ele se importa com todos nós? A vida é uma dádiva, não podemos desprezá-la ou jogá-la fora por qualquer motivo.
        A moça pousou as mãos nos ombros do menino, procurando entender no fundo daqueles olhos inocentes o que seu coração estava tentando dizer-lhe.
        – Escuta aqui, garoto, nada está dando certo comigo. Minha família não me entende, briguei com meu namorado, decidi acabar com esta porcaria de vida que levo e tu vens dizer que Deus se importa comigo?
– Você já deu alguma chance para Deus lhe fazer feliz? Volte para sua casa, entre no seu quarto, ore, peça sinceramente ajuda. Não vai fazer diferença você tirar sua vida hoje ou amanhã.
A moça retirou as mãos dos ombros do menino, tentou arrumar seus próprios cabelos longos que o vento teimava em desalinhar; refletindo na sinceridade daquelas palavras que ouvira, resmungou:
        – É, tens razão. Mais um dia, menos um dia, não faz diferença. Amanhã verei o que faço. Queres dormir em casa hoje? Lá tem muito lugar... e comida também.
        É bem provável que a moça não tenha notado o sorriso de alegria daquela criança. Os dois puseram-se a caminhar juntos. As lâmpadas dos postes da praça tentavam iluminar as trilhas já soturnas do lugar. A monotonia daquele caminhar foi interrompida bruscamente:
        – Hei moça, passa para cá a grana!
        Os dois pararam de chofre. Ela, apertando a bolsa contra o peito, hesitava em cumprir a ordem do assaltante. Seus olhos, fixos no revólver que reluzia à sua frente, emprestavam àquele rosto um semblante misto de surpresa e pavor.
        O menino adiantou-se. Colocando-se entre a moça e o assaltante, pediu:
        – Amigo, não faça isso. Deixa-nos ir em paz.
        O bandido, inquieto, nervoso, não conseguia manter a arma firme na mão. Vociferando grunhiu:
        – Sai da frente moleque, não quero nada de ti. Acho que além da bolsa vou lhe fazer um agrado. Ela é muito bonita.
        A moça, num repente, querendo livrar-se daquela ameaça, correu tentando fugir. O estampido surdo de um tiro calou a voz que gritava por ajuda.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 13 de outubro de 2013

Meninos de Rua


II Capítulo
2ª Parte

         Mal acabou de falar, ele e mais dois do grupo que o acompanhavam desapareceram rapidamente do local.
Enquanto o semáforo alternava monotonamente suas cores, as duas crianças, pressentindo algo de ruim, entreolharam-se, e, juntas, afastaram-se devagar.
         – Acho que vamos ter encrenca hoje – falou ela em voz baixa enquanto andavam. – Sentes isso também?
– É muito provável, mas confio em Deus.
–Tu acreditas mesmo que Deus se importa com duas pessoas como nós, que não temos nem casa para morar?
– Claro que acredito! Deus se importa com todos nós, ricos ou pobres, brancos ou pretos. Afinal de contas, foi Ele quem nos criou.
         – Eu queria acreditar nisso também, mas é difícil.
         – Para acreditarmos em algo temos que conhecer. Quem conhece a Palavra de Deus acredita plenamente.
         – E onde eu vou ouvir a tal Palavra de Deus?
         – Ela está escrita na Bíblia. Alguns homens foram inspirados pelo Espírito Santo de Deus e a escreveram.
         – Eu nunca vi uma Bíblia!
         – É nela que se aprende tudo o que diz respeito a Deus. É por isso que tenho certeza de que Ele se importa conosco e nos ouve. Está escrito, e Deus é fiel à Sua Palavra.
         – Quer dizer que tudo que falamos Deus ouve?
         – Não só ouve como vê o que fazemos. Ele não está escondido entre as nuvens como pensam alguns. Está presente em todo lugar, inclusive aqui andando conosco.
         – Se está aqui conosco por que não o vejo?
         – Um dia nós O veremos com toda sua glória. Por enquanto, podemos senti-Lo através do que faz.
         – Tens certeza mesmo que Ele ouve o que falamos?
         – É claro que tenho. Ele nos ouve sim!
         – Quando se pede alguma coisa, Ele ouve também?
         – Com certeza, mesmo que se peça baixinho ou em pensamento.
         A menina diminuiu o passo como se fosse parar. Balbuciou alguma coisa, sorriu e voltou a andar normalmente por algum tempo.
Olhando para o companheiro de jornada, exclamou:
         – Estou com medo! Tenho certeza de que hoje à noite o cara que comanda nosso grupo vai tentar alguma coisa comigo. Foi assim que ele fez com as outras garotas que andam conosco. Ele toma conta da gente, mas é mau. Fica com o dinheiro que se consegue, compra maconha, cola, drogas e bebidas.
         – Por que vocês aceitam isso?
         – Se não aceitarmos ele é capaz de nos matar. Às vezes temos até que roubar juntos em arrastão. Fazemos o que ele manda.
         – E a polícia, não prende vocês?
         – Prende, mas solta. Principalmente agora que ele, toda semana, “molha a mão” de um guarda.
         Os dois pararam em uma padaria de esquina. Um senhor de cabelos curtos e grisalhos, rosto condecorado pelas rugas do tempo, aproximou-se deles devagar; com voz cansada, falou:
         – Menina, a ti já conheço bastante, mas vejo que arrumaste um colega. Estão com fome?
         O brilho de seus olhos respondeu àquela pergunta. Andando devagar, equilibrando-se em uma bengala desgastada, afastou-se deles até uma cesta de pães que estava sob o balcão, apanhou alguns, tirou um litro de leite de uma velha geladeira e os entregou.
         – Levem, comam! E tu, menina, vê se deixa aquela maldita cola. Um dia ela te mata.
         Os dois meninos entreolharam-se e ela falou:
         – De hoje em diante não vou usar mais nenhum tipo de droga. Nem cola nem nada. Descobri que estou sendo observada em tudo o que faço; também tudo o que falo alguém ouve.
         O menino achou graça. O senhor de cabelos curtos e grisalhos ficou sem entender nada. Agradeceram os alimentos, caminharam até um banco de uma praça próxima. Comeram avidamente.
         – Quando falaste em não usar mais drogas, estavas falando sério?
         – Estava sim.
         – Já tentaste deixar esse vício antes?
         – Já sim, mas não consegui. Eu não sabia que Deus podia nos ouvir. Hoje pedi baixinho para Ele me ajudar a largar as drogas e as ruas. Tu não disseste que Ele nos ouve? Que pode tudo?
         Um sorriso alargou-se no rosto do menino. Ele elevou os olhos aos céus. Sorriu mais ainda agradecendo por aquelas palavras que acabara de ouvir.
         Algum tempo se passou. Voltaram à marquise sob a qual passaram a noite anterior. Já estava escuro. Vários membros do grupo já estavam lá reunidos. O fogo ainda não estava aceso. Esperavam que o frio aumentasse.
         O mesmo rapaz da touca de meia azul chegou demonstrando sinais de embriaguez. Entoando uma série de palavrões, dirigiu-se a eles:
         – Hoje vocês não renderam nada. Passearam o dia todo. São uns molengas. Pensam que vão ficar de “menor de idade” a vida toda? Temos que aproveitar enquanto não podemos ir para um presídio. Temos que aproveitar agora.
         Todos ouviram calados. Ninguém ousava interromper. Ele continuou:
– O policial está para chegar. Quem arrumou grana traga logo para cá.
         Um por um dos garotos esvaziou seus bolsos perante ele.
         – Só isso? É muito pouco. Não estão escondendo nada? O dinheiro que tomei do velho, na porta do banco, só deu para comprar uns baseados e algumas pedras de “crack”.
         Todos continuaram calados. Ninguém ousava pronunciar uma só palavra. A violência do chefe já havia sido demonstrada em ocasiões anteriores. Nenhum deles queria senti-la na própria pele.
         A noite arrastou-se monotonamente aumentando a ansiedade e a inquietação do grupo. O fogo foi aceso. O guarda não chegava. Mais uma vez, o chefe, mais alcoolizado que antes, empunhando uma garrafa na mão, bradou:
         – Alguma coisa está errada. Esse cara nunca se atrasou para vir buscar a grana dele, mas deixa pra lá!
         O grupo inteiro apenas ouvia os impropérios. Num repente, seus olhos buscaram alguém entre os presentes:
         – Onde está o novato que se juntou a nós ontem à noite?
         O menino, que estava um pouco afastado dos demais, sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Empalideceu. Quase num soluço respondeu:
         – Aqui... Estou aqui.
         Vejo que não desgrudas dessa magrela aí desde que aqui chegaste. Sorrindo sarcasticamente acrescentou – Essa paquera é para casar?
         – Ela é só minha amiga... Gosto dela.
         Zombando, não parava de gargalhar. E continuou:
         – Mais tarde vou ensinar para essa tua amiga o que é ser mulher. Ela poderá trazer mais dinheiro fazendo alguns programas.
         A menina assustou-se. Os olhos cristalizaram-se de pavor deixando escorrer um par de lágrimas sobre aquele rosto triste. Um soluço fugidio entrecortou-lhe a garganta. Lembrou-se do padrasto bêbado quando a quis violentar. Instintivamente elevou os olhos para os céus. Não disse nada, apenas olhou... Olhou e falou com Deus em silêncio.
         O chefe ordenou que acendessem a fogueira de jornais. Um por um dos presentes foi se assentando em volta dela, formando o círculo costumeiro. De repente, quatro policiais pararam em frente ao grupo. Antes que alguém pudesse esboçar qualquer reação, um deles segurou o rapaz da touca azul pelas costas, gritando:
         – Quem correr leva bala!
         Os outros policiais, com armas nas mãos, cercaram os demais num relance. O que segurava o chefe, falou:
         – Prendemos o teu comparsa. Ele dedurou vocês. Aquele velho que furaste na porta do banco era um policial aposentado. Ele morreu.
         Ainda gritando, ordenou ao grupo que se encostasse na parede do prédio sob a marquise. O primeiro tiro disparado foi contra a touca azul que cobria a cabeça do chefe, até as orelhas. Em seguida, uma sequência de muitos disparos, que foi feita em direção aos outros, precedeu uma quietude mortal.
         Da mesma forma sorrateira e covarde como chegaram, saíram. Um carro de policia que estava parado na esquina os recolheu desaparecendo no escuro da noite.
         A luz da fogueira, trêmula, iluminou um amontoado de corpos inertes. A lua, única testemunha altiva e atenta, escondeu-se nas nuvens. Por um momento, nada se movia.
         Quebrando o silêncio, um gemido tênue denunciou que ainda restava, em algum lugar, um sopro de vida. O menino levanta-se. Entre os corpos perfurados por balas, encontrou sua companheira. Ela agonizava. A blusa manchada de sangue revela um grave ferimento à altura do tórax. Debruçando-se sobre ela, falou:
         – Coragem! Tu vais ficar boa.
         Ela, num esforço agigantado, elevou um pouco a cabeça, olhou em seus olhos e balbuciou:
         – Deus está nos ouvindo agora? Fala com Ele, diz que não tenho raiva da minha mãe. Nunca deixei de gostar dela.
         – Deus está nos ouvindo sim, nos vendo também, não vai deixar que morras. Tem outra coisa que não te disse a respeito de Deus: Ele conhece os nossos corações por inteiro, sabe exatamente o que sentimos... o que pensamos...
         – Quando disseste, naquele dia, que Ele nos vê, ouve e se importa conosco, passei a gostar muito d’Ele.
         – Ele nos ama também – insistiu o garoto.
         – Estás ferido?
         – Não, não estou. Deitei-me no chão quando atiraram. Fiz-me de morto. Vou chamar alguém para ajudar, fica quieta, não te mexas.
         – Não vai dar tempo – disse a garota. Estou ficando leve... fria... já não sinto quase meu corpo... Será que chegou a hora de ver a Deus na sua grande glória?
         – Já te disse que vais ficar boa, espera um pouco mais.
         O menino saiu correndo pela rua; em poucos minutos retornou com uma ambulância. O motorista, assim como os paramédicos, desceram apressados. Alguns dos meninos de rua ainda estavam vivos. A remoção para um hospital foi rápida.
         Poucas semanas depois, na manhã de um dia de sol, uma menina, em um leito de enfermaria conversava com uma senhora de cabelos muito lisos, muito negros, que contrastavam com o castanho claro de seus olhos. Assim que esta se afastou um pouco, um menino magro, mal vestido, descalço, aproximou-se do leito sem fazer um mínimo de barulho. Falou baixinho para a garota:
         – Que bom, estás te recuperando!
         Os olhos da menina brilharam de contentamento. Suas mãos, num impulso incontido, seguraram as mãos do pequeno visitante. O sorriso dos dois tornou-se um único sorriso, completou-se. Quase sussurrando, falou:
         – É muito bom te ver de novo. Cheguei a ficar apreensiva. Pensei que fosse morrer. Fui operada várias vezes. Estou quase boa.
         Percebendo o esforço que fazia para expressar-se, disse:
         – Não fales muito, também estou muito alegre em te ver.
         Ela insistiu:
         – Tenho uma surpresa para ti. Sabes quem é essa senhora que estava se afastando quando chegaste aqui? A mesma que está voltando agora, é minha mãe! Os jornais noticiaram o que fizeram conosco. Ela viu minha foto e veio me procurar.
         O garoto olhou para aquela senhora que chegava até eles. Uma outra troca de sorrisos aconteceu, porém, desta vez, entre o menino e a mulher, que pasma dirigiu-lhe a palavra:
         – És tu o amiguinho que minha filha tanto fala? Não posso nem acreditar! Vem cá, eu estava com muitas saudades de ti, me dá um abraço!
         A menina espantou-se a ponto de quase sentar-se no leito e exclamou:
         – A senhora já o conhecia?
         – Sim, minha filha, já o conhecia. Ele de vez em quando vai à igreja na qual me congrego e sempre leva consigo alguém que mora nas ruas.
         – Ele me disse que conhecia um grupo de pessoas que se reuniam aos domingos e que ajudavam aqueles que não têm onde morar.
         – É verdade. É de lá que eu o conheço. Depois que fugiste de casa, fiquei muito triste. Senti demais tua falta. O remorso quase me mata. Mandei embora o canalha que morava comigo e passei a te procurar dia e noite. Um dia, conheci um homem gentil que me falou de Jesus; minha vida mudou totalmente. Casada com ele passei a frequentar a sua igreja. Foi aí que me juntei ao grupo que ajuda meninos e meninas de rua.
         A mulher fez uma pausa enquanto, mais uma vez, abraçava o menino. Continuou a contar sua história:
         – O motorista da ambulância que te trouxe para cá, junto com alguns garotos sobreviventes, disse que foi muita sorte ele ter passado por uma rua que nem era seu caminho. Sei que foi Deus respondendo minhas orações nas quais eu pedia para te achar com vida.
         – Mamãe – interrompeu a menina –, quando eu sair daqui quero conhecer tua igreja! Quero aprender mais a respeito desse Deus que se preocupa até com pessoas que não têm onde morar.
         – Certamente! Assim que o médico te liberar para irmos para casa.
         – Vou ter uma família outra vez?
         Um sorriso iluminou o rosto daquela senhora:
         – Claro que sim! E em breve terás companhia para brincar. Estou grávida!
         – Que legal vai ser, sempre quis ter um irmão. Pode ser uma irmãzinha também – concluiu sorrindo.
         O menino alegrou-se muito ao saber que sua amiga teria outra vez um lar. Sairia das ruas, exatamente como pedira a Deus.
Lentamente foi se afastando daquela senhora, que naquele momento abraçava feliz a filha, como se quisesse descontar todo tempo perdido.
         Mais uma vez, o vento triste do mundo abraçou aquele menino. Seus pés, magros, descalços, pisaram outra vez o chão frio e amargo das ruas.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

domingo, 6 de outubro de 2013

Meninos de Rua


Capítulo II
Meninos de Rua
1ª Parte
A noite escura impõe um silêncio pesado. Uma fogueira de jornais sob a marquise de um prédio diminui o frio acalentado pelo hálito da brisa que sopra constante. Uma roda de meninos, sentados, estende as mãos em direção ao fogo, procurando um calor amigo. As chamas brincam entre seus dedos ágeis num carinho aconchegante. Ombro a ombro, seus corpos se tocam cerrando mais aquele círculo vivo.
         A garoa fina, insistente, dança frente aos refletores da rua. No chão, algumas poças d’água refletem, invertidas, imagens multicoloridas e alegres, de um anúncio luminoso escrito em néon.
         Um menino, em busca de agasalho, aproxima-se devagar. Chega mais perto do grupo, aperta as mãos uma contra a outra, esfregando-as, e fica observando aquele fogo já não tão forte quanto antes.
         O líder dos garotos do grupo, aparentando uns quatorze anos, olha de soslaio, puxa fundo uma baforada do cigarro de maconha que sustenta entre os dedos, e fala:
– Qual é a tua, maninho? Tá querendo encrenca? Qual é?!
O menino aproxima-se mais um pouco, e atentamente, continua a contemplá-los. Aparentavam de 8 a 15 anos de idade. O comportamento, entretanto, era de quem já armazenasse experiências de longos e incansáveis anos de vida e malícia.
A hierarquia entre eles saltava aos olhos. Apenas um tomava a iniciativa. Moreno, touca de meia azul enfiada na cabeça, cobrindo-lhe até as orelhas, deixava apenas parte de seus longos cabelos negros, arrumados em pequenas tranças, à mostra sobre o pescoço. Os olhos, tingidos de vermelho pela droga que estava usando, pareciam dar-lhe mais autoridade sobre os demais companheiros. As duas blusas de mangas compridas, sobrepostas em seu corpo, não apagavam o brilho de uma lâmina oculta na cintura, por baixo de uma bermuda preta. Aumentando a entonação de voz, esbravejou:
– Vais ficar aí parado? Que queres aqui? És algum alcaguete?
– Não, não sou. Estou apenas procurando um lugar para passar a noite. Essa garoa fina está incomodando muito.
– Tens alguma coisa para espantar a fome ou o frio?
– Não, não tenho!
– Nem cola, pontas de cigarro, ou quem sabe uma pedrinha das boas?
– Não – insistiu o menino –, não tenho nada.
– Como queres então ficar conosco? Terias que pagar. Cai fora, não perturba!
         O menino continuou ali parado esfregando as mãos e argumentou:
– O jornal de vocês está acabando. Não vão precisar de mais para manter o fogo aceso? Perto daqui vi muito papel e até pedaços de madeira de uma caixa; se eu trouxer...
O moreno da touca de meia azul olhou para os componentes da roda, e nos olhos de cada um deles, a votação silenciosa se completou.
– Vai buscar! Se for mesmo bastante, passarás a noite conosco.
         Alguns minutos se passaram. A garoa que se transformara em chuva fina continuava a esfriar e umedecer a noite. Arrastando uma caixa de madeira cheia de papéis – restos da limpeza de um escritório ali perto – , o menino chegou de volta.
         O fogo que aquecia o grupo já estava bem fraco. Rapidamente, dois levantaram-se da roda, retiraram o material da caixa e reavivaram as chamas. Alguns pedaços de madeira ajudaram a compor a nova fogueira.
         Uma menina, aparentando no máximo 10 anos, afastou-se um pouco do grupo, tirou de debaixo da blusa uma garrafa plástica cortada ao meio e apertou-a contra o rosto. Um cheiro forte de cola de sapateiro misturou-se à brisa fria da quase madrugada.
         O chefe do grupo, o moreno da touca azul, que empunhava entre os dedos outro cigarro de maconha, falou:
- Vem, senta conosco. A noite está só começando. Chega perto do fogo. Se fores mesmo um cara legal, poderemos até pensar em um teste para fazeres parte do nosso grupo.
         O menino sentou-se no chão como membro do círculo. O calor em suas mãos estendidas em direção ao fogo, fez com que em seus dedos arroxeados, voltassem a circular o sangue borbulhante da vida. A menina, isolada, continuava com o rosto mergulhado na garrafa de cola. Quase nem se mexia. Agora, uma vasilha de cachaça percorria de mão em mão pelo grupo inquieto.
         A noite se fez mais escura e mais fria, até que, preguiçoso, o sol começou a despontar com seus primeiros raios.
         Um a um do grupo levantou-se devagar quase sem forças para recomeçar o dia. A ressaca era evidente. Cachaça, drogas, cigarros, ainda embotavam suas mentes. Quase que como autômatos, dirigiram-se a uma praça em busca da água de um chafariz que os acordaria de fato.
         A menina que havia cheirado cola por boa parte da noite, mal conseguia andar. Os olhos vermelhos, raiados de sangue, não lhe davam a visão perfeita do dia. O sol que aquecia, também a incomodava. O garoto que se juntara ao grupo durante a noite, aproximou-se:
         – Você está bem?
         Ela voltou o rosto em sua direção procurando saber quem lhe falava. Os cabelos em desalinho desciam-lhe até os ombros. Eram muito lisos, muito negros, e emoldurando aquele rostinho pálido, salientavam o castanho claro de seus olhos. A blusa de algodão que lhe descia até o meio das coxas, mostrava a silhueta de seu corpo magro. Que queres? Quem és? Não te conheço...
– Ontem à noite estava procurando um lugar para passar a noite e encontrei vocês. Deixaram que ficasse e me aquecesse junto ao fogo.
– De onde vens? Fugiste de casa também?
         – Não, não fugi. Moro por aí; onde fico, é minha casa.
– Há quanto tempo estás nas ruas?
         – Não sei bem ao certo, mas pelo menos há dois anos. Por que tanta pergunta? O que estás querendo?
         O olhar de desconfiança mudou-lhe o semblante tornando-o quase agressivo. Com as mãos ágeis, arrumou o cabelo enrolando-o por sobre a cabeça e apressou o passo.
         – Espera, só quero conversar um pouco. Não quero nada, só conversar.
         Os dois acertaram novamente o passo. O chafariz da praça oferecia um jato de água límpida e fria. O lago que o envolvia, cercado de palmeiras imponentes, desenhava uma espécie de oásis natural. Alguns peixes pequenos transluziam seus corpos coloridos próximos ao fundo de areia.
Os dois agacharam-se; seus rostos refletiram-se no espelho d’água. Entreolharam-se. Trocaram um sorriso fraterno. Um banho improvisado restituiu-lhes parcialmente as energias.
         O rapaz da touca azul aproximou-se, franziu o cenho, e com voz rouca, determinou:
         – Vejo que ficaram amigos! Quero vocês dentro de uma hora no semáforo de sempre. Vamos precisar hoje de uma grana extra para acalmar aquele policial que nos persegue. Afinal, hoje é sexta-feira.
         – Tudo bem! – respondeu ela. Antes vou passar na feira e catar alguma coisa para comer. Estou com muita fome.
         – Posso ir junto? – indagou o menino. Também estou faminto.
         Não houve resposta. Caminharam juntos por algum tempo. Ele arriscou indagar:
         – Onde mora tua família?
         –Não tenho família, respondeu áspera e apressadamente.
         – Ninguém?
         – Acho que ainda tenho mãe em algum lugar por aí.
         – E teu pai, conheces?
         – Morreu quando eu tinha 6 anos. Caiu de um andaime de construção. Ele era bom. Não deixava faltar comida em casa. Trabalhava muito. E tu, tens pai?
         – Tenho sim, está no céu!
         De relance olhou para o rosto da amiga e percebeu que ela chorava. Caminharam lado a lado por mais alguns instantes e ele insistiu:
         – E tua mãe?
         – Moramos juntas por algum tempo. Ela saía cedo para trabalhar na casa de uma família e só voltava de noite. Pela manhã, eu ficava na escola e de tarde ficava em casa. Um dia, ela chegou mais tarde com um namorado. Não gostei dele.
         – Quem sabe se ela não queria só te arrumar outro pai que pudesse cuidar de vocês? Não seria bom?
         – Quem sabe!? O cara foi ficando, ficando, e um dia, foi morar conosco. No início foi até bom, mas de vez em quando chegava bêbado. Num desses dias, minha mãe não estava em casa e ele tentou deitar comigo. Minha sorte foi que consegui fugir. Ele estava muito porre. Só voltei quando mamãe chegou do trabalho.
         – Não contaste tudo?
         – Contei, mas ela duvidou. Acho que gostava muito dele e acabou ficando com raiva de mim. Um dia, ele tentou de novo. Fugi de casa e nunca mais voltei.
         – Pretendes morar na rua para sempre?
         – Claro que não. Isso é vida de bicho! Tenho esperança de um dia encontrar uma família que goste de mim, e quando crescer quero casar... ter filhos.
         – Verdade? Queres mesmo sair das ruas? Eu conheço um lugar onde algumas pessoas se reúnem aos domingos pela manhã e cuidam de gente como nós que não têm onde morar. Vamos lá ver como é?
         – Mas como chegaremos lá com estas roupas? Nem sapatos temos!
         – Ouvi falar também que lá eles aceitam as pessoas como são e do jeito que estão.
         – Tu vais comigo?
         – Vou. Também não gosto de morar nas ruas. Eles ensinam muitas coisas boas lá. Neste domingo iremos, então.
Os dois abriram um sorriso alegre e duradouro ante a perspectiva de deixarem aquela vida.
Chegaram à feira. Seus olhos brilhavam frente às frutas exibidas nos balcões das barracas que, lado a lado, formavam longos corredores. Andaram lentamente através deles sentindo o aroma gostoso e característico daquelas delícias. Chegaram a um grande pátio onde os caminhões entregam suas cargas. Foi lá, no meio das frutas amassadas ou podres, que são desprezadas no lixo, que fizeram seu desjejum. A fome era tanta que a escolha não pôde ser minuciosa.
         Já passavam das dez horas quando pararam no semáforo de costume. A menina aproxima-se de um carro de luxo. O motorista sacode o dedo em negativa ao pedido de uma moeda. Ela insiste, chega mais perto, e a negativa se torna mais veemente.
Outro veículo para no sinal vermelho. Mais um minuto de esperanças. Apressadamente aproxima-se da janela do motorista que baixou o vidro. Ouve algumas palavras e volta com uma expressão de rancor no semblante. O menino percebe as minúcias do desapontamento estampado na sua face; num repente, indaga:
         –  Que aconteceu? Por que essa raiva?
         – Aquele porcaria disse que me daria muito dinheiro... mas lá na casa dele. Já estou acostumada com isso, só que não estou à venda. Muitas garotas que aceitam esses programas, depois viram prostitutas; eu não quero ser assim.
         O dia se prolonga arrastado, cansativo. Perigosamente, entre os carros, esquivam-se ensaiando os passos ágeis de uma dança triste e macabra, guiados pelos ditames da vida.
         A luta para matar a fome é vencida, tendo como aliados restos de sanduíches e guloseimas desprezadas, surrupiados sorrateiramente dos pratos de bares.
         A tarde se insinua através de sombras mais escuras, e ventos mais constantes, à chegada da noite. O chefe do grupo aproxima-se devagar tentando ao máximo esconder a sua presença; dirige-se à menina:
         – Que tal o dia? O que vocês conseguiram? Descolaram a grana do guarda?
         Amedrontada, tentando justificar seu dia de pouco sucesso, respondeu:
         – Não consegui muita coisa. Só algumas moedas. Bem que tentamos.
         – Garanto que andaste recusando programas! As outras garotas da nossa patota todas aceitam. Já está na hora de começares. Hoje de noite vou te ensinar umas coisas.
         – Quando chegar a hora eu vou, ainda tenho medo desses caras.
         – Os outros também não arrumaram quase nada de grana. Tomei a carteira de um velho. Ele me agarrou. Fui obrigado a dar uma espetada nele para conseguir fugir. Nós éramos quatro. Acho que a polícia pegou um dos nossos. Vamos nos reunir debaixo da marquise assim que escureça. Lá conversaremos direito.
(continua)
Pr. Antonio Jorge

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