II
Capítulo
2ª
Parte
Mal acabou de falar, ele e mais dois do
grupo que o acompanhavam desapareceram rapidamente do local.
Enquanto
o semáforo alternava monotonamente suas cores, as duas crianças, pressentindo
algo de ruim, entreolharam-se, e, juntas, afastaram-se devagar.
– Acho que vamos ter encrenca hoje –
falou ela em voz baixa enquanto andavam. – Sentes isso também?
– É
muito provável, mas confio em Deus.
–Tu
acreditas mesmo que Deus se importa com duas pessoas como nós, que não temos
nem casa para morar?
– Claro
que acredito! Deus se importa com todos nós, ricos ou pobres, brancos ou
pretos. Afinal de contas, foi Ele quem nos criou.
– Eu queria acreditar nisso também, mas
é difícil.
– Para acreditarmos em algo temos que
conhecer. Quem conhece a Palavra de Deus acredita plenamente.
– E onde eu vou ouvir a tal Palavra de
Deus?
– Ela está escrita na Bíblia. Alguns
homens foram inspirados pelo Espírito Santo de Deus e a escreveram.
– Eu nunca vi uma Bíblia!
– É nela que se aprende tudo o que diz
respeito a Deus. É por isso que tenho certeza de que Ele se importa conosco e
nos ouve. Está escrito, e Deus é fiel à Sua Palavra.
– Quer dizer que tudo que falamos Deus
ouve?
– Não só ouve como vê o que fazemos.
Ele não está escondido entre as nuvens como pensam alguns. Está presente em
todo lugar, inclusive aqui andando conosco.
– Se está aqui conosco por que não o
vejo?
– Um dia nós O veremos com toda sua
glória. Por enquanto, podemos senti-Lo através do que faz.
– Tens certeza mesmo que Ele ouve o que
falamos?
– É claro que tenho. Ele nos ouve sim!
– Quando se pede alguma coisa, Ele ouve
também?
– Com certeza, mesmo que se peça
baixinho ou em pensamento.
A menina diminuiu o passo como se fosse
parar. Balbuciou alguma coisa, sorriu e voltou a andar normalmente por algum
tempo.
Olhando
para o companheiro de jornada, exclamou:
– Estou com medo! Tenho certeza de que
hoje à noite o cara que comanda nosso grupo vai tentar alguma coisa comigo. Foi
assim que ele fez com as outras garotas que andam conosco. Ele toma conta da
gente, mas é mau. Fica com o dinheiro que se consegue, compra maconha, cola,
drogas e bebidas.
– Por que vocês aceitam isso?
– Se não aceitarmos ele é capaz de nos
matar. Às vezes temos até que roubar juntos em arrastão. Fazemos o que ele
manda.
– E a polícia, não prende vocês?
– Prende, mas solta. Principalmente
agora que ele, toda semana, “molha a mão” de um guarda.
Os dois pararam em uma padaria de
esquina. Um senhor de cabelos curtos e grisalhos, rosto condecorado pelas rugas
do tempo, aproximou-se deles devagar; com voz cansada, falou:
– Menina, a ti já conheço bastante, mas
vejo que arrumaste um colega. Estão com fome?
O brilho de seus olhos respondeu àquela
pergunta. Andando devagar, equilibrando-se em uma bengala desgastada,
afastou-se deles até uma cesta de pães que estava sob o balcão, apanhou alguns,
tirou um litro de leite de uma velha geladeira e os entregou.
– Levem, comam! E tu, menina, vê se
deixa aquela maldita cola. Um dia ela te mata.
Os dois meninos entreolharam-se e ela
falou:
– De hoje em diante não vou usar mais
nenhum tipo de droga. Nem cola nem nada. Descobri que estou sendo observada em
tudo o que faço; também tudo o que falo alguém ouve.
O menino achou graça. O senhor de
cabelos curtos e grisalhos ficou sem entender nada. Agradeceram os alimentos,
caminharam até um banco de uma praça próxima. Comeram avidamente.
– Quando falaste em não usar mais
drogas, estavas falando sério?
– Estava sim.
– Já tentaste deixar esse vício antes?
– Já sim, mas não consegui. Eu não
sabia que Deus podia nos ouvir. Hoje pedi baixinho para Ele me ajudar a largar
as drogas e as ruas. Tu não disseste que Ele nos ouve? Que pode tudo?
Um sorriso alargou-se no rosto do
menino. Ele elevou os olhos aos céus. Sorriu mais ainda agradecendo por aquelas
palavras que acabara de ouvir.
Algum tempo se passou. Voltaram à
marquise sob a qual passaram a noite anterior. Já estava escuro. Vários membros
do grupo já estavam lá reunidos. O fogo ainda não estava aceso. Esperavam que o
frio aumentasse.
O mesmo rapaz da touca de meia azul
chegou demonstrando sinais de embriaguez. Entoando uma série de palavrões,
dirigiu-se a eles:
– Hoje vocês não renderam nada.
Passearam o dia todo. São uns molengas. Pensam que vão ficar de “menor de
idade” a vida toda? Temos que aproveitar enquanto não podemos ir para um
presídio. Temos que aproveitar agora.
Todos ouviram calados. Ninguém ousava
interromper. Ele continuou:
– O
policial está para chegar. Quem arrumou grana traga logo para cá.
Um por um dos garotos esvaziou seus
bolsos perante ele.
– Só isso? É muito pouco. Não estão
escondendo nada? O dinheiro que tomei do velho, na porta do banco, só deu para
comprar uns baseados e algumas pedras de “crack”.
Todos continuaram calados. Ninguém
ousava pronunciar uma só palavra. A violência do chefe já havia sido
demonstrada em ocasiões anteriores. Nenhum deles queria senti-la na própria
pele.
A noite arrastou-se monotonamente
aumentando a ansiedade e a inquietação do grupo. O fogo foi aceso. O guarda não
chegava. Mais uma vez, o chefe, mais alcoolizado que antes, empunhando uma
garrafa na mão, bradou:
– Alguma coisa está errada. Esse cara
nunca se atrasou para vir buscar a grana dele, mas deixa pra lá!
O grupo inteiro apenas ouvia os
impropérios. Num repente, seus olhos buscaram alguém entre os presentes:
– Onde está o novato que se juntou a
nós ontem à noite?
O menino, que estava um pouco afastado
dos demais, sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Empalideceu. Quase num soluço
respondeu:
– Aqui... Estou aqui.
Vejo que não desgrudas dessa magrela aí
desde que aqui chegaste. Sorrindo sarcasticamente acrescentou – Essa paquera é
para casar?
– Ela é só minha amiga... Gosto dela.
Zombando, não parava de gargalhar. E
continuou:
– Mais tarde vou ensinar para essa tua
amiga o que é ser mulher. Ela poderá trazer mais dinheiro fazendo alguns
programas.
A menina assustou-se. Os olhos
cristalizaram-se de pavor deixando escorrer um par de lágrimas sobre aquele
rosto triste. Um soluço fugidio entrecortou-lhe a garganta. Lembrou-se do
padrasto bêbado quando a quis violentar. Instintivamente elevou os olhos para
os céus. Não disse nada, apenas olhou... Olhou e falou com Deus em silêncio.
O chefe ordenou que acendessem a
fogueira de jornais. Um por um dos presentes foi se assentando em volta dela,
formando o círculo costumeiro. De repente, quatro policiais pararam em frente
ao grupo. Antes que alguém pudesse esboçar qualquer reação, um deles segurou o
rapaz da touca azul pelas costas, gritando:
– Quem correr leva bala!
Os outros policiais, com armas nas
mãos, cercaram os demais num relance. O que segurava o chefe, falou:
– Prendemos o teu comparsa. Ele dedurou
vocês. Aquele velho que furaste na porta do banco era um policial aposentado.
Ele morreu.
Ainda gritando, ordenou ao grupo que se
encostasse na parede do prédio sob a marquise. O primeiro tiro disparado foi
contra a touca azul que cobria a cabeça do chefe, até as orelhas. Em seguida,
uma sequência de muitos disparos, que foi feita em direção aos outros, precedeu
uma quietude mortal.
Da mesma forma sorrateira e covarde
como chegaram, saíram. Um carro de policia que estava parado na esquina os
recolheu desaparecendo no escuro da noite.
A luz da fogueira, trêmula, iluminou um
amontoado de corpos inertes. A lua, única testemunha altiva e atenta,
escondeu-se nas nuvens. Por um momento, nada se movia.
Quebrando o silêncio, um gemido tênue
denunciou que ainda restava, em algum lugar, um sopro de vida. O menino
levanta-se. Entre os corpos perfurados por balas, encontrou sua companheira.
Ela agonizava. A blusa manchada de sangue revela um grave ferimento à altura do
tórax. Debruçando-se sobre ela, falou:
– Coragem! Tu vais ficar boa.
Ela, num esforço agigantado, elevou um
pouco a cabeça, olhou em seus olhos e balbuciou:
– Deus está nos ouvindo agora? Fala com
Ele, diz que não tenho raiva da minha mãe. Nunca deixei de gostar dela.
– Deus está nos ouvindo sim, nos vendo
também, não vai deixar que morras. Tem outra coisa que não te disse a respeito
de Deus: Ele conhece os nossos corações por inteiro, sabe exatamente o que
sentimos... o que pensamos...
– Quando disseste, naquele dia, que Ele
nos vê, ouve e se importa conosco, passei a gostar muito d’Ele.
– Ele nos ama também – insistiu o
garoto.
– Estás ferido?
– Não, não estou. Deitei-me no chão
quando atiraram. Fiz-me de morto. Vou chamar alguém para ajudar, fica quieta,
não te mexas.
– Não vai dar tempo – disse a garota.
Estou ficando leve... fria... já não sinto quase meu corpo... Será que chegou a
hora de ver a Deus na sua grande glória?
– Já te disse que vais ficar boa,
espera um pouco mais.
O menino saiu correndo pela rua; em
poucos minutos retornou com uma ambulância. O motorista, assim como os
paramédicos, desceram apressados. Alguns dos meninos de rua ainda estavam
vivos. A remoção para um hospital foi rápida.
Poucas semanas depois, na manhã de um
dia de sol, uma menina, em um leito de enfermaria conversava com uma senhora de
cabelos muito lisos, muito negros, que contrastavam com o castanho claro de seus
olhos. Assim que esta se afastou um pouco, um menino magro, mal vestido,
descalço, aproximou-se do leito sem fazer um mínimo de barulho. Falou baixinho
para a garota:
– Que bom, estás te recuperando!
Os olhos da menina brilharam de
contentamento. Suas mãos, num impulso incontido, seguraram as mãos do pequeno
visitante. O sorriso dos dois tornou-se um único sorriso, completou-se. Quase
sussurrando, falou:
– É muito bom te ver de novo. Cheguei a
ficar apreensiva. Pensei que fosse morrer. Fui operada várias vezes. Estou
quase boa.
Percebendo o esforço que fazia para
expressar-se, disse:
– Não fales muito, também estou muito
alegre em te ver.
Ela insistiu:
– Tenho uma surpresa para ti. Sabes
quem é essa senhora que estava se afastando quando chegaste aqui? A mesma que
está voltando agora, é minha mãe! Os jornais noticiaram o que fizeram conosco.
Ela viu minha foto e veio me procurar.
O garoto olhou para aquela senhora que
chegava até eles. Uma outra troca de sorrisos aconteceu, porém, desta vez,
entre o menino e a mulher, que pasma dirigiu-lhe a palavra:
– És tu o amiguinho que minha filha
tanto fala? Não posso nem acreditar! Vem cá, eu estava com muitas saudades de
ti, me dá um abraço!
A menina espantou-se a ponto de quase
sentar-se no leito e exclamou:
– A senhora já o conhecia?
– Sim, minha filha, já o conhecia. Ele
de vez em quando vai à igreja na qual me congrego e sempre leva consigo alguém
que mora nas ruas.
– Ele me disse que conhecia um grupo de
pessoas que se reuniam aos domingos e que ajudavam aqueles que não têm onde
morar.
– É verdade. É de lá que eu o conheço.
Depois que fugiste de casa, fiquei muito triste. Senti demais tua falta. O
remorso quase me mata. Mandei embora o canalha que morava comigo e passei a te
procurar dia e noite. Um dia, conheci um homem gentil que me falou de Jesus;
minha vida mudou totalmente. Casada com ele passei a frequentar a sua igreja.
Foi aí que me juntei ao grupo que ajuda meninos e meninas de rua.
A mulher fez uma pausa enquanto, mais
uma vez, abraçava o menino. Continuou a contar sua história:
– O motorista da ambulância que te
trouxe para cá, junto com alguns garotos sobreviventes, disse que foi muita
sorte ele ter passado por uma rua que nem era seu caminho. Sei que foi Deus
respondendo minhas orações nas quais eu pedia para te achar com vida.
– Mamãe – interrompeu a menina –,
quando eu sair daqui quero conhecer tua igreja! Quero aprender mais a respeito
desse Deus que se preocupa até com pessoas que não têm onde morar.
– Certamente! Assim que o médico te
liberar para irmos para casa.
– Vou ter uma família outra vez?
Um sorriso iluminou o rosto daquela
senhora:
– Claro que sim! E em breve terás
companhia para brincar. Estou grávida!
– Que legal vai ser, sempre quis ter um
irmão. Pode ser uma irmãzinha também – concluiu sorrindo.
O menino alegrou-se muito ao saber que
sua amiga teria outra vez um lar. Sairia das ruas, exatamente como pedira a
Deus.
Lentamente
foi se afastando daquela senhora, que naquele momento abraçava feliz a filha,
como se quisesse descontar todo tempo perdido.
Mais uma vez, o vento triste do mundo
abraçou aquele menino. Seus pés, magros, descalços, pisaram outra vez o chão
frio e amargo das ruas.
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com
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