domingo, 13 de outubro de 2013

Meninos de Rua


II Capítulo
2ª Parte

         Mal acabou de falar, ele e mais dois do grupo que o acompanhavam desapareceram rapidamente do local.
Enquanto o semáforo alternava monotonamente suas cores, as duas crianças, pressentindo algo de ruim, entreolharam-se, e, juntas, afastaram-se devagar.
         – Acho que vamos ter encrenca hoje – falou ela em voz baixa enquanto andavam. – Sentes isso também?
– É muito provável, mas confio em Deus.
–Tu acreditas mesmo que Deus se importa com duas pessoas como nós, que não temos nem casa para morar?
– Claro que acredito! Deus se importa com todos nós, ricos ou pobres, brancos ou pretos. Afinal de contas, foi Ele quem nos criou.
         – Eu queria acreditar nisso também, mas é difícil.
         – Para acreditarmos em algo temos que conhecer. Quem conhece a Palavra de Deus acredita plenamente.
         – E onde eu vou ouvir a tal Palavra de Deus?
         – Ela está escrita na Bíblia. Alguns homens foram inspirados pelo Espírito Santo de Deus e a escreveram.
         – Eu nunca vi uma Bíblia!
         – É nela que se aprende tudo o que diz respeito a Deus. É por isso que tenho certeza de que Ele se importa conosco e nos ouve. Está escrito, e Deus é fiel à Sua Palavra.
         – Quer dizer que tudo que falamos Deus ouve?
         – Não só ouve como vê o que fazemos. Ele não está escondido entre as nuvens como pensam alguns. Está presente em todo lugar, inclusive aqui andando conosco.
         – Se está aqui conosco por que não o vejo?
         – Um dia nós O veremos com toda sua glória. Por enquanto, podemos senti-Lo através do que faz.
         – Tens certeza mesmo que Ele ouve o que falamos?
         – É claro que tenho. Ele nos ouve sim!
         – Quando se pede alguma coisa, Ele ouve também?
         – Com certeza, mesmo que se peça baixinho ou em pensamento.
         A menina diminuiu o passo como se fosse parar. Balbuciou alguma coisa, sorriu e voltou a andar normalmente por algum tempo.
Olhando para o companheiro de jornada, exclamou:
         – Estou com medo! Tenho certeza de que hoje à noite o cara que comanda nosso grupo vai tentar alguma coisa comigo. Foi assim que ele fez com as outras garotas que andam conosco. Ele toma conta da gente, mas é mau. Fica com o dinheiro que se consegue, compra maconha, cola, drogas e bebidas.
         – Por que vocês aceitam isso?
         – Se não aceitarmos ele é capaz de nos matar. Às vezes temos até que roubar juntos em arrastão. Fazemos o que ele manda.
         – E a polícia, não prende vocês?
         – Prende, mas solta. Principalmente agora que ele, toda semana, “molha a mão” de um guarda.
         Os dois pararam em uma padaria de esquina. Um senhor de cabelos curtos e grisalhos, rosto condecorado pelas rugas do tempo, aproximou-se deles devagar; com voz cansada, falou:
         – Menina, a ti já conheço bastante, mas vejo que arrumaste um colega. Estão com fome?
         O brilho de seus olhos respondeu àquela pergunta. Andando devagar, equilibrando-se em uma bengala desgastada, afastou-se deles até uma cesta de pães que estava sob o balcão, apanhou alguns, tirou um litro de leite de uma velha geladeira e os entregou.
         – Levem, comam! E tu, menina, vê se deixa aquela maldita cola. Um dia ela te mata.
         Os dois meninos entreolharam-se e ela falou:
         – De hoje em diante não vou usar mais nenhum tipo de droga. Nem cola nem nada. Descobri que estou sendo observada em tudo o que faço; também tudo o que falo alguém ouve.
         O menino achou graça. O senhor de cabelos curtos e grisalhos ficou sem entender nada. Agradeceram os alimentos, caminharam até um banco de uma praça próxima. Comeram avidamente.
         – Quando falaste em não usar mais drogas, estavas falando sério?
         – Estava sim.
         – Já tentaste deixar esse vício antes?
         – Já sim, mas não consegui. Eu não sabia que Deus podia nos ouvir. Hoje pedi baixinho para Ele me ajudar a largar as drogas e as ruas. Tu não disseste que Ele nos ouve? Que pode tudo?
         Um sorriso alargou-se no rosto do menino. Ele elevou os olhos aos céus. Sorriu mais ainda agradecendo por aquelas palavras que acabara de ouvir.
         Algum tempo se passou. Voltaram à marquise sob a qual passaram a noite anterior. Já estava escuro. Vários membros do grupo já estavam lá reunidos. O fogo ainda não estava aceso. Esperavam que o frio aumentasse.
         O mesmo rapaz da touca de meia azul chegou demonstrando sinais de embriaguez. Entoando uma série de palavrões, dirigiu-se a eles:
         – Hoje vocês não renderam nada. Passearam o dia todo. São uns molengas. Pensam que vão ficar de “menor de idade” a vida toda? Temos que aproveitar enquanto não podemos ir para um presídio. Temos que aproveitar agora.
         Todos ouviram calados. Ninguém ousava interromper. Ele continuou:
– O policial está para chegar. Quem arrumou grana traga logo para cá.
         Um por um dos garotos esvaziou seus bolsos perante ele.
         – Só isso? É muito pouco. Não estão escondendo nada? O dinheiro que tomei do velho, na porta do banco, só deu para comprar uns baseados e algumas pedras de “crack”.
         Todos continuaram calados. Ninguém ousava pronunciar uma só palavra. A violência do chefe já havia sido demonstrada em ocasiões anteriores. Nenhum deles queria senti-la na própria pele.
         A noite arrastou-se monotonamente aumentando a ansiedade e a inquietação do grupo. O fogo foi aceso. O guarda não chegava. Mais uma vez, o chefe, mais alcoolizado que antes, empunhando uma garrafa na mão, bradou:
         – Alguma coisa está errada. Esse cara nunca se atrasou para vir buscar a grana dele, mas deixa pra lá!
         O grupo inteiro apenas ouvia os impropérios. Num repente, seus olhos buscaram alguém entre os presentes:
         – Onde está o novato que se juntou a nós ontem à noite?
         O menino, que estava um pouco afastado dos demais, sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Empalideceu. Quase num soluço respondeu:
         – Aqui... Estou aqui.
         Vejo que não desgrudas dessa magrela aí desde que aqui chegaste. Sorrindo sarcasticamente acrescentou – Essa paquera é para casar?
         – Ela é só minha amiga... Gosto dela.
         Zombando, não parava de gargalhar. E continuou:
         – Mais tarde vou ensinar para essa tua amiga o que é ser mulher. Ela poderá trazer mais dinheiro fazendo alguns programas.
         A menina assustou-se. Os olhos cristalizaram-se de pavor deixando escorrer um par de lágrimas sobre aquele rosto triste. Um soluço fugidio entrecortou-lhe a garganta. Lembrou-se do padrasto bêbado quando a quis violentar. Instintivamente elevou os olhos para os céus. Não disse nada, apenas olhou... Olhou e falou com Deus em silêncio.
         O chefe ordenou que acendessem a fogueira de jornais. Um por um dos presentes foi se assentando em volta dela, formando o círculo costumeiro. De repente, quatro policiais pararam em frente ao grupo. Antes que alguém pudesse esboçar qualquer reação, um deles segurou o rapaz da touca azul pelas costas, gritando:
         – Quem correr leva bala!
         Os outros policiais, com armas nas mãos, cercaram os demais num relance. O que segurava o chefe, falou:
         – Prendemos o teu comparsa. Ele dedurou vocês. Aquele velho que furaste na porta do banco era um policial aposentado. Ele morreu.
         Ainda gritando, ordenou ao grupo que se encostasse na parede do prédio sob a marquise. O primeiro tiro disparado foi contra a touca azul que cobria a cabeça do chefe, até as orelhas. Em seguida, uma sequência de muitos disparos, que foi feita em direção aos outros, precedeu uma quietude mortal.
         Da mesma forma sorrateira e covarde como chegaram, saíram. Um carro de policia que estava parado na esquina os recolheu desaparecendo no escuro da noite.
         A luz da fogueira, trêmula, iluminou um amontoado de corpos inertes. A lua, única testemunha altiva e atenta, escondeu-se nas nuvens. Por um momento, nada se movia.
         Quebrando o silêncio, um gemido tênue denunciou que ainda restava, em algum lugar, um sopro de vida. O menino levanta-se. Entre os corpos perfurados por balas, encontrou sua companheira. Ela agonizava. A blusa manchada de sangue revela um grave ferimento à altura do tórax. Debruçando-se sobre ela, falou:
         – Coragem! Tu vais ficar boa.
         Ela, num esforço agigantado, elevou um pouco a cabeça, olhou em seus olhos e balbuciou:
         – Deus está nos ouvindo agora? Fala com Ele, diz que não tenho raiva da minha mãe. Nunca deixei de gostar dela.
         – Deus está nos ouvindo sim, nos vendo também, não vai deixar que morras. Tem outra coisa que não te disse a respeito de Deus: Ele conhece os nossos corações por inteiro, sabe exatamente o que sentimos... o que pensamos...
         – Quando disseste, naquele dia, que Ele nos vê, ouve e se importa conosco, passei a gostar muito d’Ele.
         – Ele nos ama também – insistiu o garoto.
         – Estás ferido?
         – Não, não estou. Deitei-me no chão quando atiraram. Fiz-me de morto. Vou chamar alguém para ajudar, fica quieta, não te mexas.
         – Não vai dar tempo – disse a garota. Estou ficando leve... fria... já não sinto quase meu corpo... Será que chegou a hora de ver a Deus na sua grande glória?
         – Já te disse que vais ficar boa, espera um pouco mais.
         O menino saiu correndo pela rua; em poucos minutos retornou com uma ambulância. O motorista, assim como os paramédicos, desceram apressados. Alguns dos meninos de rua ainda estavam vivos. A remoção para um hospital foi rápida.
         Poucas semanas depois, na manhã de um dia de sol, uma menina, em um leito de enfermaria conversava com uma senhora de cabelos muito lisos, muito negros, que contrastavam com o castanho claro de seus olhos. Assim que esta se afastou um pouco, um menino magro, mal vestido, descalço, aproximou-se do leito sem fazer um mínimo de barulho. Falou baixinho para a garota:
         – Que bom, estás te recuperando!
         Os olhos da menina brilharam de contentamento. Suas mãos, num impulso incontido, seguraram as mãos do pequeno visitante. O sorriso dos dois tornou-se um único sorriso, completou-se. Quase sussurrando, falou:
         – É muito bom te ver de novo. Cheguei a ficar apreensiva. Pensei que fosse morrer. Fui operada várias vezes. Estou quase boa.
         Percebendo o esforço que fazia para expressar-se, disse:
         – Não fales muito, também estou muito alegre em te ver.
         Ela insistiu:
         – Tenho uma surpresa para ti. Sabes quem é essa senhora que estava se afastando quando chegaste aqui? A mesma que está voltando agora, é minha mãe! Os jornais noticiaram o que fizeram conosco. Ela viu minha foto e veio me procurar.
         O garoto olhou para aquela senhora que chegava até eles. Uma outra troca de sorrisos aconteceu, porém, desta vez, entre o menino e a mulher, que pasma dirigiu-lhe a palavra:
         – És tu o amiguinho que minha filha tanto fala? Não posso nem acreditar! Vem cá, eu estava com muitas saudades de ti, me dá um abraço!
         A menina espantou-se a ponto de quase sentar-se no leito e exclamou:
         – A senhora já o conhecia?
         – Sim, minha filha, já o conhecia. Ele de vez em quando vai à igreja na qual me congrego e sempre leva consigo alguém que mora nas ruas.
         – Ele me disse que conhecia um grupo de pessoas que se reuniam aos domingos e que ajudavam aqueles que não têm onde morar.
         – É verdade. É de lá que eu o conheço. Depois que fugiste de casa, fiquei muito triste. Senti demais tua falta. O remorso quase me mata. Mandei embora o canalha que morava comigo e passei a te procurar dia e noite. Um dia, conheci um homem gentil que me falou de Jesus; minha vida mudou totalmente. Casada com ele passei a frequentar a sua igreja. Foi aí que me juntei ao grupo que ajuda meninos e meninas de rua.
         A mulher fez uma pausa enquanto, mais uma vez, abraçava o menino. Continuou a contar sua história:
         – O motorista da ambulância que te trouxe para cá, junto com alguns garotos sobreviventes, disse que foi muita sorte ele ter passado por uma rua que nem era seu caminho. Sei que foi Deus respondendo minhas orações nas quais eu pedia para te achar com vida.
         – Mamãe – interrompeu a menina –, quando eu sair daqui quero conhecer tua igreja! Quero aprender mais a respeito desse Deus que se preocupa até com pessoas que não têm onde morar.
         – Certamente! Assim que o médico te liberar para irmos para casa.
         – Vou ter uma família outra vez?
         Um sorriso iluminou o rosto daquela senhora:
         – Claro que sim! E em breve terás companhia para brincar. Estou grávida!
         – Que legal vai ser, sempre quis ter um irmão. Pode ser uma irmãzinha também – concluiu sorrindo.
         O menino alegrou-se muito ao saber que sua amiga teria outra vez um lar. Sairia das ruas, exatamente como pedira a Deus.
Lentamente foi se afastando daquela senhora, que naquele momento abraçava feliz a filha, como se quisesse descontar todo tempo perdido.
         Mais uma vez, o vento triste do mundo abraçou aquele menino. Seus pés, magros, descalços, pisaram outra vez o chão frio e amargo das ruas.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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