segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A suicida


A suicida
Parte II

O silêncio voltou a reinar na praça. Um vulto ágil, de arma em punho, desapareceu nas sombras. Um corpo jovem de mulher agonizava no chão envolto em sangue.
         O menino ajoelhou-se frente ao corpo; suas mãos afastaram daquele rosto os cabelos longos que lhe encobriam parcialmente a face. Recebeu um olhar de súplica. Arfante, ela deixou escapar de seus lábios algumas palavras:
         – Acho que poderíamos ser bons amigos: eu, tu e teu Deus... já que Ele anda sempre contigo!
         Seremos ainda – disse rapidamente o menino. Ele está aqui conosco agora. Fica tranquila, vou pedir ajuda.
         Alguns minutos depois uma ambulância transportava aquela jovem para um hospital. A cirurgia foi delicada. O projétil se alojara muito próximo da coluna. O risco de uma paralisia era grande.
         No dia seguinte, ao abrir os olhos, apesar da visão turvada pelo efeito de remédios, ela conseguiu divisar o rosto de sua mãe. Após algum tempo de silêncio, tentando entender o que estava acontecendo, num sussurro quase inaudível, perguntou:
         – Onde estou? Que está acontecendo aqui?
         Aquela senhora, aparentando uns quarenta anos, pele morena, cabelos negros, muito lisos, caídos até os ombros, estendeu a mão, e afagando aquele rosto bonito, mas triste da moça, num soluço deixou emergir um desabafo que, com certeza, brotou-lhe do coração:
         – Que te fizeram, minha filha? Jamais pensei encontrar-te nesta situação! Quando telefonaram aqui do hospital, quase que não acreditei. A sorte foi que um menino entregou a tua bolsa para um médico. Lá estavam tua identidade e endereço. Ele falou que foi um assalto.
         As pálpebras da moça, emolduradas por longas pestanas arqueadas, esconderam aqueles olhos negros quase sem brilho, deixando-lhe no rosto um ar melancólico.
         Devagar, a mãe segurou as mãos frias da moça, apertou-as contra o próprio peito, como se quisesse mergulhá-las em seu coração. Seus pensamentos transformaram-se em palavras sussurradas pausadamente:
– Minha filha, quisera começar tudo de novo. Gostaria de voltar ao dia em que, pela primeira vez, te amamentei no seio. Cresceste rápido, talvez rápido demais. Os anos te transformaram na moça bonita que és hoje. Não percebi o dia em que começamos a nos afastar. Os presentes caros, a casa rica, os muitos vestidos, joias não foram suficientes para nos manter unidas. O trabalho incessante de teu pai contribuiu para nos desagregar, mas tenho a impressão que desde o início faltou algo em nossa família; agora talvez seja tarde para descobrir.
A moça abriu os olhos devagar, apertou levemente as mãos da mãe que seguravam as suas, e perguntou:
– Onde está o menino que me defendeu quando fui assaltada? Acho que ele gostou de mim...
– Eu também gosto muito de ti minha filha! Teu pai deve estar chegando. Está preocupado contigo. Com certeza vai te trazer um bom presente.
         – O único presente que quero agora é ver meu amigo. Consiga isso para mim...
         – Como vou encontrar esse menino se nem ao menos o conheço e não sei onde mora?
         – É só olhar bem dentro dos olhos dele que a senhora o reconhece. Os cabelos são negros, a pele é pálida, mas a expressão de seu rosto magro transmite paz, a mesma que eu gostaria de ter para dividir em casa com vocês.
         O silêncio voltou a tomar conta do quarto do hospital. As duas trocaram um olhar amigo como nunca haviam feito. Um sorriso de recomeço aproximou um pouco aqueles corações.
         – Esse menino... já o conhecias antes?
         – Não, mãe, foi a primeira vez que o vi! Eu estava muito triste, pensando em sumir da vida. Ele falou-me que era amigo de Deus. Senti sinceridade em suas palavras. Não sei por que nem como, mas ele transmitia paz, também tranqüilidade.
         – Não perguntaste onde ele morava?
         – Claro, mas disse-me que onde parava era sua casa.
         – Ele não estava com alguém ou com um colega?
         – Não! Estava sozinho, ou melhor, disse que Deus era seu amigo e estava sempre com ele.
         A mãe esboçou um sorriso fugaz. Deslizou a mão pelos cabelos longos da filha tentando arrumá-los.
         – Filha, em poucos dias voltaremos para casa. Vai ser tudo diferente, eu te prometo!
         A porta do quarto abriu-se. Um homem aparentando quarenta anos, cabelos não tão grisalhos e marcados com a preocupação do tempo, entrou forçando um sorriso.
         – Trouxe um presente, minha filha, acho que vais gostar!
         – A moça instintivamente olhou no rosto da mãe que não lhe recusou um sorriso “amarelo”. Em seguida, voltando-se para o pai, indagou:
         – Será que vai começar tudo de novo?
         O homem ficou sem entender nada. Caminhou até a filha e entregou-lhe uma caixa pequena, cuidadosamente embrulhada para presente.
         – Tenho certeza de que vais gostar, abre!
         – Pai, será que dentro desta caixinha está todo o amor que o senhor diz sentir por mim? Será que neste pacote está também o tempo que gostaria de ter estado com o senhor, conversando, brincando, sorrindo? Será que aqui dentro estará também embrulhado aquele passeio que eu gostaria de ter feito com o senhor, de mãos dadas por alguma praça, onde o senhor iria me ensinar as coisas da vida, que até agora não aprendi e por isso me machuquei nos meus relacionamentos do dia-a-dia? Será, papai? Ou será mais uma joia cara que irá juntar-se a tantas outras que, inúteis, se empoeiram naquele cofre cretino que também guarda muitos de seus segredos? Ainda não reparou que não uso as joias que o senhor me dá?
         O silêncio instalado no ar confundiu-se com a tristeza, que em forma de lágrima, desceu cascateando pelo rosto atônito daquele homem. Com a voz embargada, lábios trêmulos, deixou escapar a palavra perdão fugida de sua alma para agasalhar-se profundamente no coração da moça.
         Tens razão minha filha...tens razão. De agora em diante, vamos procurar ser realmente uma família de verdade.
– Uma família – repetiu a moça – é o presente que mais eu gostaria de receber e ser feliz como o garoto que me salvou a vida.
         – Como sabes que ele era feliz?
         – Eu senti isso nele; por isso no início eu o agredi com palavras, pois o invejei. A felicidade dele vinha de um seu amigo inseparável que ele dizia ser Deus.
         – Tens razão, minha filha. A dor que senti quando pensei que fosses nos deixar para sempre, me fez refletir bastante. Teu colega tinha razão, a felicidade vem de Deus. Precisamos buscá-Lo juntos, fazê-Lo nosso amigo também.
         A porta do quarto entreabriu-se devagar. Através dela, um menino magro, cabelos negros e rosto pálido, ouvindo aquelas palavras, voltou sem nada dizer. Carregou para as ruas apenas um sorriso de contentamento. Fez-se mais feliz.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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