domingo, 3 de novembro de 2013

A Procura


Capítulo 4
A Procura
1ª parte

         Reflexos luminosos multicoloridos espargiam dos cristais dos lustres da casa perdendo-se na seda das cortinas. O “Parabéns pra você”, tocado pelo conjunto musical, acompanhado de muitas palmas, dava a impressão perfeita de uma feliz e suntuosa festa de aniversário.
         À cabeceira da mesa, mais parecendo rainha, a homenageada sustenta um sorriso no rosto bonito, encimado por uma tiara de brilhantes. A pele morena contrasta com o vermelho do batom, realçando o brilho do colar de pérolas que a afaga, repousado em seus seios fartos. Quase não se nota o arco-íris refletido na lágrima que teimou em passear-lhe pelo rosto.
         Um grande número de convidados brinda, erguendo taças de champanhe, aos dezoito anos daquela jovem. O vestido rendado, longo, dificulta os abraços dos muitos parentes. Por fim, a fadiga... a vontade de estar só... a ...realidade.
         As escadas que a levam ao seu quarto maltratam mais ainda aquele corpo cansado. Com a imagem refletida no espelho emoldurado com adornos de prata, olhou, temerosa, para dentro de si mesma. Chorou.
         Começou a despir-se lentamente. Os cabelos negros caíram-lhe desalinhados sobre os ombros; ganharam nova forma sem os brilhantes que os sustentavam no alto da cabeça. O etéreo vestido, deslizando até o chão, deu liberdade, exibindo a verdade de seus contornos físicos. Instintivamente, afagou o ventre com as mãos; assustada, jogou-se na cama procurando fugir da realidade da vida.
         Os pensamentos confusos buscavam, no atropelo de sua vida, uma solução para aquela angústia. O ser que carregava no ventre não era culpado por nada. Não podia ser sacrificado. Por outro lado, deixá-lo nascer seria expor ao público a vergonha de uma conduta duvidosa, de um comportamento escuso, que no fundo do coração ela mesma não aprovava.
         O medo da reação dos pais fazia com que em sua testa, gotas pesadas de suor brotassem aos borbotões. A palidez do rosto transmitia a sensação de mal-estar que lhe aumentava a gelidez das mãos. O sono não encontrava pousada naquela alma doente de preocupações.
         Ao despontar do dia, todas as horas marcadas pelo velho relógio, sentinela silencioso, atento no alto da parede do quarto, foram registradas em sua mente, e expostas na vitrine de seus olhos acalentados pela tristeza. A água quente, sempre abundante do chuveiro, lavou-lhe o corpo... não a alma. Envolvida pelo carinho suave da toalha macia que lhe beijava secando-lhe o corpo, caminhou até o “closed”; vestiu-se devagar.
         Desceu as escadas. Na cozinha, sentou-se à mesa. O café estava servido. A abundância de frutas diversas, leite, iogurte, pães, bolos, sucos, geléias e outras iguarias não lhe despertaram o apetite. Na xícara de porcelana apenas “pingou” um pouco de café que mal lhe serviu para molhar os lábios.
– Bom-dia! – Disse-lhe o pai que estava sentado à cabeceira.
– Bom-dia! – retrucou em voz baixa sem lhe dirigir o olhar, que continuou fixo em seu rosto refletido de cabeça para baixo na concha de uma colher de prata.
Tentando conversar com a filha, insistiu.
– Não estás com fome? Comeste tanto assim ontem à noite, no teu aniversário?
Apenas o ruído do leite caindo na própria xícara soou como resposta.
– Nestes últimos dias tenho notado que andas triste, encafifada..., brigaste com o namorado?
Empurrando a cadeira para trás com as pernas, levantou-se devagar:
– Não briguei com ninguém, só estou enjoada.
O pai seguia-a com os olhos quando ela dirigiu-se outra vez às escadas em busca de seu quarto. Tomou o leite, levantou-se da mesa, apanhou a inseparável pasta preta de couro. Dirigiu-se à garagem onde o motorista o esperava.
Já passava do meio dia quando uma mulher, aparentando uns 35 anos, chegou à mesa do café para o desjejum. Sentou-se; tocou uma sineta; imediatamente uma serviçal apresentou-se de pé ao seu lado.
– Diga, senhora!
– Meu marido está em casa?
– Não, senhora, respondeu de pronto a criada.
– E minha filha?
– Desceu, tomou um gole de café, subiu para o quarto; há pouco dirigiu-se ao jardim.
Com a mão trêmula, serviu em uma taça um pouco de suco de tomate. Sorveu-o de um gole. Levantou-se. Do bolso do robe de cetim tirou uma carteira de cigarros. No bar da sala de estar, em um pequeno copo de cristal sem jaça, tomou uma dose de whisky e acendeu um cigarro. Cercada por uma nuvem de fumaça, dirigiu-se ao jardim.
Caminhou até a fonte. A água, que num forte fluxo esguichava para o alto, caía em gotículas esparsas embaladas pela brisa fagueira e constante que soprava.
Dirigiu-se até um coreto. Apenas as flores vermelhas cor de sangue de um bougaville dançavam discretas, sopradas pela mesma brisa que dispersava a água do chafariz. Os bancos estavam vazios.
Andou até a piscina, onde o espelho d’água azul, cristalina, apenas refletiu sua imagem solitária a par com o rosto quente e alegre do sol. A sauna também estava vazia. Na garagem, o Mercedes esporte, da filha, agonizava numa espera enfadonha. De volta ao jardim, fitando a casa imponente de pintura impecável, sentiu por um segundo o amargor da impressão de não ter nada, a não ser a dor pungente do presságio de ter perdido a única filha.
Apressando os passos voltou ao bar da sala. Tomou outra dose de whisky antes de falar com o marido pelo telefone:
– Nossa filha não está em casa. Ela te falou para onde ia?
– Não, não disse! Procura na casa das amigas!
– Ela não tem amigas!
– Já olhaste bem pela casa? No jardim?
– Já procurei-a por toda parte!
– Não demoro. Logo chegarei aí.
O som da ligação cortada impeliu-a a sucessivas doses de whisky.
As horas se arrastavam lentamente diante daquela mulher aflita. Mais um gole... Mais um... Mais um...
Já estava escuro quando a porta da sala se abriu. Um homem entrou, acendeu a luz. Viu a esposa jogada em um sofá de couro, embriagada, com a mão pendente em direção ao chão onde brilhava um copo solitário. Na mesinha ao lado, duas garrafas vazias serviam de testemunhas para aquele quadro muito pouco familiar.
Andou em direção às escadas segurando a pasta preta de couro; dirigiu-se ao seu quarto. Trocou de roupas. Desceu.
Uma empregada da casa, atribulada, apertando as mãos contra o peito, dirigiu-lhe a palavra:
– Senhor, a mocinha saiu de casa sem avisar. Já procuramos por todo canto; não a encontramos. Sua esposa desesperou-se; bebeu demais.
– Ela só quer um motivo para beber... Todos os dias encontra um diferente!
– Senhor! – inquiriu a doméstica – estou preocupada com a menina. O senhor bem sabe que trato dela desde que nasceu... que podemos fazer?
– Tu não podes fazer nada a não ser cuidar da tua patroa. Vou sair e procurá-la. Chama o motorista.
De cabeça baixa, andando devagar como se contasse os próprios passos, desapareceu em direção à cozinha. Minutos depois, segurando uma xícara de chá quente, ajoelhou-se junto à patroa. Gentilmente, chamou-a:
– Senhora... Senhora! Tome um pouquinho de chá. Vai-lhe fazer bem!
Lentamente a mulher abriu os olhos sentou-se no sofá, colocou as mãos na cabeça. Por um instante ficou imóvel.
– Senhora – insistiu a serviçal –, tome um pouquinho de chá. Fiz agora mesmo, vai fazer-lhe bem...
– Onde está minha filha? Já voltou?
A empregada colocou a xícara em cima da mesinha ao lado, segurou as mãos da patroa; afagando-as, falou com bondade:
– Seu marido foi procurá-la. Não vai acontecer nada com a menina. Daqui a pouco os dois vão chegar..., a senhora vai ver!
– Ela me avisou que um dia sumiria de casa... Não acreditei... Não pensei que tivesse coragem.
– Ela vai voltar, tenho certeza. Vou orar... Pedir para Deus protegê-la – referiu a doméstica.
– Será que não sabes que Deus não perde tempo se preocupando com a filha de uma bêbeda?
– Isso não é verdade, Deus se preocupa com todos, o seu amor é infinito. Ele está sempre disposto a nos ajudar... é só pedirmos sinceramente...
– Queria acreditar nessas coisas que acreditas. Quando criança, freqüentei uma igreja evangélica junto com meus pais.
– A senhora não se sentia bem ouvindo a Palavra de Deus? Por que se afastou de lá?
– Porque percebi que meu pai só era bom na igreja. Na frente dos outros era um exemplo, até que fugiu com uma “irmã,” amiga de minha mãe. Desde aí, passei a desacreditar em tudo.
A doméstica, que ainda permanecia de joelhos segurando as mãos da patroa, suspirou fundo, levantou-se devagar, arrumou o avental sobre o vestido e falou:
- Infelizmente, algumas pessoas freqüentam igrejas, participam até de trabalhos evangelísticos, ouvem a Palavra de Deus, mas não a cumprem. Por isso está escrito em Efésios 6.6 “ Não sirvais apenas diante de seus olhos, procurando agradar aos homens, mas como escravos de Cristo, que cumprem de coração a vontade de Deus”. Não basta, portanto, ir à igreja ou falar de Deus; temos que estar com Deus.
A patroa levantou-se num esforço. Cambaleante, caminhou até o bar.
A chuva fina que iniciou a cair tornou a noite mais fria. A luz forte emitida pelos faróis do carro abria espaço na escuridão das ruas. Os olhos atentos do pai buscavam, aflitos, a filha, na esperança de um consolo. De repente, avistou um vulto pequeno de criança, que entre trapos e jornais, procurava agasalhar-se da chuva sob uma marquise. Com um gesto mandou parar o carro. Abriu a porta e saiu. A chuva fina que começava a engrossar embaçava-lhe os óculos, dificultava-lhe a visão. Aproximou-se devagar:
– Menino! – exclamou –, estás aqui há muito tempo?
A criança franzina afastou de seu rosto um pedaço de papelão com o qual procurava proteger-se dos respingos, olhou para o homem que estava de pé a sua frente, e depois de disfarçar uma tosse seca com as mãos, respondeu:
– Sim senhor, já faz algum tempo.
– Por acaso, passou por aqui uma moça morena, cabelos negros, longos, alta...?
– Senhor, a única que passou por aqui foi a moça que mora aqui perto, na casa grande, branca, que tem no jardim um chafariz bonito.
O homem procurou também se esconder da chuva achegando-se para baixo da marquise. Tirou os óculos, enxugou-o com um lenço; recolocando-o no rosto prosseguiu com um brilho de esperanças na face:
– Como sabes onde essa moça mora? Tu a conheces?
– Sim senhor, eu a conheço já faz um tempo. Sempre que passo por lá vejo-a no jardim; ela me dá comida; por várias vezes até conversamos.
– Sabes para onde foi? Ela estava só?
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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