O Andarilho
CAPÍTULO I
O senhor rico
Já com dificuldades o menino caminha. Veio de longe...
muito longe. Não sabe para onde aquela rua o leva. A calçada de pedras machuca
cada vez mais seus pés doridos. A luz do dia desmaia cálida nos braços da
noite. O vento, soprando mais forte, mais frio, sacode a blusa fina, rota e
desbotada que lhe recobre parcialmente as costas.
Com as mãos cruzadas, braços dobrados contra o peito,
tenta em vão agasalhar-se. A
ansiedade de não ter destino certo parece não perturbar-lhe. Quer apenas um
lugar para ficar e aquecer-se.
Consegue andar mais alguns metros. As luzes que clareiam
um amplo jardim chamam-lhe a atenção. A casa grande, branca, imponente, parece
solitária no meio de tanto verde. Uma grade de ferro, muito alta, bem
trabalhada em adornos, abraça por completo aquele local. Alguns insetos,
ofuscados pela luz, dardejam contra os holofotes. O menino aproxima-se do
portão. Com o rosto magro encostado na grade tenta divisar alguém. A dor de
estar mais um dia sem comer já o incomoda bastante.
Um carro luxuoso pára muito próximo. O portão abre-se
por um comando eletrônico e dá-lhe passagem. Assustado, o menino afasta-se um
pouco. Um homem, segurando um cachorro, desce do veículo, aproxima-se e
pergunta:
– Ei, garoto, que queres aqui!?
– Desculpe senhor! Estava passando, vi esta casa tão
bonita, cercada por esse jardim todo iluminado, fiquei só olhando.
– Tu tens pai, garoto?
– Tenho sim, senhor, está no céu.
O homem o fitou mais atentamente. Sentiu naqueles
olhos fundos, mas alegres, algo diferente dos outros mendigos. Pensou por
alguns momentos. Falou:
– Estás com fome?
– Senhor, hoje ainda não comi.
O
homem encurtou a coleira do cachorro prendendo-o mais perto de si. Aproximou-se
de um portão menor, abriu-o devagar. Com um aceno de mão fez com que o garoto
entrasse.
–
É a primeira vez que passas por aqui?
– É sim, senhor, desculpe se incomodo.
O cachorro emitiu um grunhido dócil, sacudiu a cauda,
aproximou-se, e num pulo, colocou as patas dianteiras nos ombros do menino como
se quisesse abraçá-lo.
– Tens certeza de que não andas rondando esta casa há
mais tempo? Meu cão foi treinado para atacar qualquer estranho que se aproxime,
mas parece que gostou de ti. Vamos entrar, vem comer um pouco.
O homem não percebeu o sorriso nos
lábios pálidos da criança, muito menos notou que aquele coraçãozinho bateu mais
acelerado. Em muito tempo, era a primeira vez que era convidado para entrar em
uma casa.
Caminharam juntos através de uma vereda
que os levou à porta da casa. Assim que entraram, uma criada aproximou-se:
– Senhor, quer que chame os seguranças? Este menino
está lhe importunando?
Com um gesto paterno afagou com as mãos a cabeça do
garoto recomendando:
– Está tudo bem! Pega no quarto do André algumas
roupas, toalhas e tudo mais que for preciso. Providencia um bom banho para meu
hóspede. Hoje ele vai jantar conosco assim que estiver arrumado.
A criada saiu para
cumprir as ordens sem entender absolutamente nada. Era a primeira vez que, em
alguns anos, uma criança entrava naquela casa.
O homem dirigiu-se ao
bar, colocou em um copo algumas pedras de gelo, afogou-as em conhaque, tomou um
gole bem pequeno e desviou o olhar para um retrato que encimava o piano de
cauda. O sorriso da criança ali estampado arrancou um par de lágrimas dos olhos
rudes daquele homem. Era André, seu filho de 10 anos, falecido havia pouco
tempo.
Sozinho naquela sala
ricamente decorada, sentou-se no sofá de couro, ligou a televisão, descansou os
pés em uma banqueta, apertou o copo entre as mãos, e de um gole sorveu o
conhaque até a última gota. Pelo menos mais duas doses generosas da bebida
foram consumidas antes que o menino descesse pela escada de granito que unia o
segundo andar da casa à sala.
A criada deixou-os a
sós, anunciando que serviria o jantar em seguida.
Sentado como estava,
o homem fitou aquela criança por instantes, em silêncio. Olhou-a dos pés à
cabeça esboçando um sorriso fugaz. Não conseguiu falar na primeira tentativa.
Com a voz embargada tentou de novo:
– Eu tive um filho
assim como tu. Um dia, em um acidente de carro, ele morreu junto com a mãe.
Desde então moro só aqui nesta casa. Meu melhor e único amigo nesta vida é
aquele cachorro que quase te abraça no jardim. Quantos anos tens?
Desajeitado, tentando
acostumar-se às roupas que lhe deram para vestir, olhou nos olhos do homem que
o abrigara e afligiu-se.
– Senhor, por que
estas lágrimas em seus olhos? Por que esta tristeza? Eu tenho dez anos, mas já
sei quando alguém está muito triste.
– Dez anos...era essa
a idade do André. Até hoje eu o vejo estendido no asfalto sangrando, bem ao
lado da mãe. Foi tudo tão de repente...
– Senhor, seu filho
está no paraíso, com Deus. Não fique assim tão amargurado. Meu pai ensinou-me
muito a respeito das coisas de Deus.
– Deus? Eu não
acredito em Deus! É pura fantasia! Que Deus é esse que deixa uma criança morrer
em acidente de carro?
O menino calou-se por
um momento. Desviou a vista de seu olhar. Fitou o copo que o homem agitava em
círculos na mão, fazendo tilintar o gelo. Quando seus olhos se cruzaram
novamente, a face do homem cobriu-se de agonia e suor.
– É verdade que eu
havia bebido antes de dirigir, mas eu sabia o que estava fazendo. Eu sabia
sim...
– Tudo o que meu pai
me ensinou está na Bíblia. O Senhor tem uma?
– Deve ter uma
perdida aí pela biblioteca. Mas não perco meu tempo com esse tipo de leitura.
Tenho muitas empresas, muitas coisas para fazer, sou extremamente ocupado. Meu
tempo é dinheiro. E tu, pelo visto, acreditas nesse Deus? O que ele te dá? O
que tens?
– Amor... Deus me dá
amor, muito amor, e apesar de tudo, Ele ama o senhor também. Foi Ele que me deu
a alegria que sinto no peito, essa mesma alegria que me faz feliz nesta vida.
– Estás me dizendo
que és feliz? Tu que ainda há pouco me disseste que estavas com fome? Que
felicidade é esta?
– Senhor, aprendi que
a felicidade não se mede pelo patrimônio que se tem, mas sim pelo que sentimos
dentro do coração. Quem acredita em Deus e O
serve sente paz interior, mesmo em meio a
tribulações. Quando se confia no Senhor Deus, tudo acaba bem.
A conversa foi
interrompida pela criada, que anunciou o jantar servido. O menino parou de
falar, arrumou a gola da camisa e, sem jeito, seguiu o homem que caminhou até
outra sala sentando-se à cabeceira de uma mesa grande demais para apenas dois
lugares servidos. A comida podia matar a fome de várias pessoas. Em seguida
ordenou:
– Senta aqui ao meu
lado. Come, depois continuaremos nossa conversa a respeito do teu Deus.
Os pratos de
porcelana reluziam. Os talheres refletiam o arco-íris produzido pelos
candelabros de cristal pendurados ao teto. O menino não ousava tocar em nada.
A criada, percebendo
o embaraço da criança, inquiriu:
– Posso servi-lo, senhor?
Os olhos do menino
brilharam ante tanto alimento. Um sorriso maroto desenhou-se em seus lábios.
Com as mãos magras, mas firmes, conseguiu levar à boca uma porção da iguaria em seu garfo. Mastigou devagar e, de
pouco em pouco continuou, saboreando prazerosamente o alimento até o fim. Algo
doce, servido como sobremesa, completou aquele lauto jantar.
O homem, após enxugar
a boca com o guardanapo, disse sorrindo ao menino:
– Preferes continuar
nossa conversa a respeito do teu Deus agora ou amanhã de manhã? Deves estar
cansado, pois andaste o dia inteiro aí pelas ruas.
– Senhor, quando se
trata de falar do Deus que é de todos, mesmo daqueles que dizem que não
acreditam, o momento é agora.
Os dois subiram as
escadas; caminharam até uma sala de estar próxima à biblioteca. O homem não
escondeu o sorriso diante da determinação do menino. Sentaram-se em poltronas
de maneira a ficar frente a frente.
– Fala-me desse teu
Deus que não vejo; que deixa crianças morrerem em acidentes de carro; que deixa
tanta gente com fome, sem casa e outras coisas mais.
– É muito fácil,
senhor, atribuir coisas ruins a outros, principalmente quando nós mesmos somos
os responsáveis. Deus, quando nos criou nos fez perfeitos, à sua imagem e semelhança.
Nos amou muito e só quis amor em troca. Mas o homem O ofendeu, pecou, deixou-se
enganar pelo satanás; acabou expulso do paraíso. Deus nos deu o livre arbítrio.
Podemos escolher o que fazer, porém somos responsáveis pelas conseqüências de
nossos atos. Por exemplo, o senhor acaba de acender um cigarro. Já vi, na
televisão, que o cigarro causa doenças no pulmão. Caso o senhor adoeça a culpa
vai ser de Deus? Já vi anúncios mostrando que quem bebe não pode dirigir carro.
Quando acontece um acidente envolvendo alguém que estava dirigindo após beber,
a culpa também é de Deus?
O homem que escutava
atento tossiu, ajeitou-se na cadeira, esmagou o cigarro no cinzeiro de prata e
perguntou:
– Estás insinuando
que fui o culpado pelo acidente que vitimou meu filho?
– Não, senhor! Estou
tentando dizer que sempre teremos que arcar com as conseqüências de nossos
atos. O Deus que nos criou é um Deus de amor, e não alguém cruel que fica se
vingando de tudo de mau que possamos fazer.
– Foi teu pai que te
ensinou isso? Que histórias existem mais na Bíblia falando de Deus?
O menino alegrou-se
por ter despertado, naquele homem, interesse pela Palavra de Deus.
– A Bíblia conta a história de como
Deus criou o mundo; como nos criou à Sua imagem e semelhança. Conta a história
de seu povo e como, num gesto de amor supremo, mandou seu próprio Filho para
nos redimir de todos os pecados; de como foi morto em uma cruz. A única coisa
que Deus quer de nós é o amor. Quando se ama esse Deus de bondade, tudo muda na
vida da gente. Aprendemos a perdoar também e somos felizes.
– Esse teu Deus pode
perdoar qualquer pecado? Qualquer um mesmo, por pior que seja? Ele pode tirar
do coração da gente uma tristeza profunda?
– Deus pode tudo isso
e muito mais. A vida que Ele oferece é eterna. Está escrito na Bíblia, que é a
Sua própria Palavra: “Todo aquele que n’Ele crer e for batizado,
terá a vida eterna”. Quando nos arrependemos verdadeiramente de ter
pecado e pedimos perdão, Ele não só nos perdoa como nos acolhe como filho. Faz
assim como o senhor fez comigo. Eu estava com frio e o senhor me deu agasalho,
estava com fome e o senhor me deu de comer, estava com sede e o senhor me deu
de beber. Só tem uma diferença: quando se recebe alimento das mãos de Deus,
jamais se sente fome, frio ou sede de novo.
– Quer dizer que se
eu acreditar em Deus, pedir perdão pelas coisas erradas que fiz, Ele se torna
meu pai também? Vou procurar a Bíblia de que falas e ler com calma. Por hoje,
já conversamos muito, amanhã continuaremos. Já mandei arrumar o quarto que era
do meu filho para dormires. Vai descansar.
Os dois caminharam
juntos até o quarto do menino. O homem desejou-lhe boa-noite e seguiu só por um
longo corredor.
O dia amanheceu. A mesa do café foi
posta. O homem sentou-se solitário. A criada, aproximando-se, informou:
– Senhor, o menino
foi embora bem cedo. Vestiu as roupas que tinha antes de chegar aqui, deixou as
do André em cima da cama e saiu.
– Ele deixou algum
recado para mim? Exclamou nervoso!
– Disse que o ama
muito, e que todas as coisas que o senhor precisa podem ser achadas na
biblioteca.
O homem tomou café
rapidamente. Num sorriso, que há muito tempo seu rosto não sorria, disse à
criada:
– Vem, vamos procurar
um livro na biblioteca...
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com