domingo, 29 de setembro de 2013

O senhor rico


O Andarilho
CAPÍTULO I

O senhor rico

Já com dificuldades o menino caminha. Veio de longe... muito longe. Não sabe para onde aquela rua o leva. A calçada de pedras machuca cada vez mais seus pés doridos. A luz do dia desmaia cálida nos braços da noite. O vento, soprando mais forte, mais frio, sacode a blusa fina, rota e desbotada que lhe recobre parcialmente as costas.
Com as mãos cruzadas, braços dobrados contra o peito, tenta em vão agasalhar-se. A ansiedade de não ter destino certo parece não perturbar-lhe. Quer apenas um lugar para ficar e aquecer-se.
Consegue andar mais alguns metros. As luzes que clareiam um amplo jardim chamam-lhe a atenção. A casa grande, branca, imponente, parece solitária no meio de tanto verde. Uma grade de ferro, muito alta, bem trabalhada em adornos, abraça por completo aquele local. Alguns insetos, ofuscados pela luz, dardejam contra os holofotes. O menino aproxima-se do portão. Com o rosto magro encostado na grade tenta divisar alguém. A dor de estar mais um dia sem comer já o incomoda bastante.
Um carro luxuoso pára muito próximo. O portão abre-se por um comando eletrônico e dá-lhe passagem. Assustado, o menino afasta-se um pouco. Um homem, segurando um cachorro, desce do veículo, aproxima-se e pergunta:
– Ei, garoto, que queres aqui!?
– Desculpe senhor! Estava passando, vi esta casa tão bonita, cercada por esse jardim todo iluminado, fiquei só olhando.
– Tu tens pai, garoto?
– Tenho sim, senhor, está no céu.
O homem o fitou mais atentamente. Sentiu naqueles olhos fundos, mas alegres, algo diferente dos outros mendigos. Pensou por alguns momentos. Falou:
– Estás com fome?
– Senhor, hoje ainda não comi.

         O homem encurtou a coleira do cachorro prendendo-o mais perto de si. Aproximou-se de um portão menor, abriu-o devagar. Com um aceno de mão fez com que o garoto entrasse.

– É a primeira vez que passas por aqui?
– É sim, senhor, desculpe se incomodo.
O cachorro emitiu um grunhido dócil, sacudiu a cauda, aproximou-se, e num pulo, colocou as patas dianteiras nos ombros do menino como se quisesse abraçá-lo.
– Tens certeza de que não andas rondando esta casa há mais tempo? Meu cão foi treinado para atacar qualquer estranho que se aproxime, mas parece que gostou de ti. Vamos entrar, vem comer um pouco.
         O homem não percebeu o sorriso nos lábios pálidos da criança, muito menos notou que aquele coraçãozinho bateu mais acelerado. Em muito tempo, era a primeira vez que era convidado para entrar em uma casa.
         Caminharam juntos através de uma vereda que os levou à porta da casa. Assim que entraram, uma criada aproximou-se:
– Senhor, quer que chame os seguranças? Este menino está lhe importunando?
Com um gesto paterno afagou com as mãos a cabeça do garoto recomendando:
– Está tudo bem! Pega no quarto do André algumas roupas, toalhas e tudo mais que for preciso. Providencia um bom banho para meu hóspede. Hoje ele vai jantar conosco assim que estiver arrumado.
         A criada saiu para cumprir as ordens sem entender absolutamente nada. Era a primeira vez que, em alguns anos, uma criança entrava naquela casa.
        O homem dirigiu-se ao bar, colocou em um copo algumas pedras de gelo, afogou-as em conhaque, tomou um gole bem pequeno e desviou o olhar para um retrato que encimava o piano de cauda. O sorriso da criança ali estampado arrancou um par de lágrimas dos olhos rudes daquele homem. Era André, seu filho de 10 anos, falecido havia pouco tempo.
        Sozinho naquela sala ricamente decorada, sentou-se no sofá de couro, ligou a televisão, descansou os pés em uma banqueta, apertou o copo entre as mãos, e de um gole sorveu o conhaque até a última gota. Pelo menos mais duas doses generosas da bebida foram consumidas antes que o menino descesse pela escada de granito que unia o segundo andar da casa à sala.
         A criada deixou-os a sós, anunciando que serviria o jantar em seguida.
Sentado como estava, o homem fitou aquela criança por instantes, em silêncio. Olhou-a dos pés à cabeça esboçando um sorriso fugaz. Não conseguiu falar na primeira tentativa. Com a voz embargada tentou de novo:
       – Eu tive um filho assim como tu. Um dia, em um acidente de carro, ele morreu junto com a mãe. Desde então moro só aqui nesta casa. Meu melhor e único amigo nesta vida é aquele cachorro que quase te abraça no jardim. Quantos anos tens?
Desajeitado, tentando acostumar-se às roupas que lhe deram para vestir, olhou nos olhos do homem que o abrigara e afligiu-se.
        – Senhor, por que estas lágrimas em seus olhos? Por que esta tristeza? Eu tenho dez anos, mas já sei quando alguém está muito triste.
        – Dez anos...era essa a idade do André. Até hoje eu o vejo estendido no asfalto sangrando, bem ao lado da mãe. Foi tudo tão de repente...
        – Senhor, seu filho está no paraíso, com Deus. Não fique assim tão amargurado. Meu pai ensinou-me muito a respeito das coisas de Deus.
       – Deus? Eu não acredito em Deus! É pura fantasia! Que Deus é esse que deixa uma criança morrer em acidente de carro?
O menino calou-se por um momento. Desviou a vista de seu olhar. Fitou o copo que o homem agitava em círculos na mão, fazendo tilintar o gelo. Quando seus olhos se cruzaram novamente, a face do homem cobriu-se de agonia e suor.
     – É verdade que eu havia bebido antes de dirigir, mas eu sabia o que estava fazendo. Eu sabia sim...
       – Tudo o que meu pai me ensinou está na Bíblia. O Senhor tem uma?
     – Deve ter uma perdida aí pela biblioteca. Mas não perco meu tempo com esse tipo de leitura. Tenho muitas empresas, muitas coisas para fazer, sou extremamente ocupado. Meu tempo é dinheiro. E tu, pelo visto, acreditas nesse Deus? O que ele te dá? O que tens?
    – Amor... Deus me dá amor, muito amor, e apesar de tudo, Ele ama o senhor também. Foi Ele que me deu a alegria que sinto no peito, essa mesma alegria que me faz feliz nesta vida.
   – Estás me dizendo que és feliz? Tu que ainda há pouco me disseste que estavas com fome? Que felicidade é esta?
   – Senhor, aprendi que a felicidade não se mede pelo patrimônio que se tem, mas sim pelo que sentimos dentro do coração. Quem acredita em Deus e O serve sente paz interior, mesmo em meio a tribulações. Quando se confia no Senhor Deus, tudo acaba bem.
     A conversa foi interrompida pela criada, que anunciou o jantar servido. O menino parou de falar, arrumou a gola da camisa e, sem jeito, seguiu o homem que caminhou até outra sala sentando-se à cabeceira de uma mesa grande demais para apenas dois lugares servidos. A comida podia matar a fome de várias pessoas. Em seguida ordenou:
     – Senta aqui ao meu lado. Come, depois continuaremos nossa conversa a respeito do teu Deus.
Os pratos de porcelana reluziam. Os talheres refletiam o arco-íris produzido pelos candelabros de cristal pendurados ao teto. O menino não ousava tocar em nada.
A criada, percebendo o embaraço da criança, inquiriu:
– Posso servi-lo, senhor?
       Os olhos do menino brilharam ante tanto alimento. Um sorriso maroto desenhou-se em seus lábios. Com as mãos magras, mas firmes, conseguiu levar à boca uma porção da iguaria em seu garfo. Mastigou devagar e, de pouco em pouco continuou, saboreando prazerosamente o alimento até o fim. Algo doce, servido como sobremesa, completou aquele lauto jantar.
O homem, após enxugar a boca com o guardanapo, disse sorrindo ao menino:
     – Preferes continuar nossa conversa a respeito do teu Deus agora ou amanhã de manhã? Deves estar cansado, pois andaste o dia inteiro aí pelas ruas.
     – Senhor, quando se trata de falar do Deus que é de todos, mesmo daqueles que dizem que não acreditam, o momento é agora.
     Os dois subiram as escadas; caminharam até uma sala de estar próxima à biblioteca. O homem não escondeu o sorriso diante da determinação do menino. Sentaram-se em poltronas de maneira a ficar frente a frente.
     – Fala-me desse teu Deus que não vejo; que deixa crianças morrerem em acidentes de carro; que deixa tanta gente com fome, sem casa e outras coisas mais.
     – É muito fácil, senhor, atribuir coisas ruins a outros, principalmente quando nós mesmos somos os responsáveis. Deus, quando nos criou nos fez perfeitos, à sua imagem e semelhança. Nos amou muito e só quis amor em troca. Mas o homem O ofendeu, pecou, deixou-se enganar pelo satanás; acabou expulso do paraíso. Deus nos deu o livre arbítrio. Podemos escolher o que fazer, porém somos responsáveis pelas conseqüências de nossos atos. Por exemplo, o senhor acaba de acender um cigarro. Já vi, na televisão, que o cigarro causa doenças no pulmão. Caso o senhor adoeça a culpa vai ser de Deus? Já vi anúncios mostrando que quem bebe não pode dirigir carro. Quando acontece um acidente envolvendo alguém que estava dirigindo após beber, a culpa também é de Deus?
     O homem que escutava atento tossiu, ajeitou-se na cadeira, esmagou o cigarro no cinzeiro de prata e perguntou:
     – Estás insinuando que fui o culpado pelo acidente que vitimou meu filho?
  – Não, senhor! Estou tentando dizer que sempre teremos que arcar com as conseqüências de nossos atos. O Deus que nos criou é um Deus de amor, e não alguém cruel que fica se vingando de tudo de mau que possamos fazer.
    – Foi teu pai que te ensinou isso? Que histórias existem mais na Bíblia falando de Deus?
     O menino alegrou-se por ter despertado, naquele homem, interesse pela Palavra de Deus.
         – A Bíblia conta a história de como Deus criou o mundo; como nos criou à Sua imagem e semelhança. Conta a história de seu povo e como, num gesto de amor supremo, mandou seu próprio Filho para nos redimir de todos os pecados; de como foi morto em uma cruz. A única coisa que Deus quer de nós é o amor. Quando se ama esse Deus de bondade, tudo muda na vida da gente. Aprendemos a perdoar também e somos felizes.
     – Esse teu Deus pode perdoar qualquer pecado? Qualquer um mesmo, por pior que seja? Ele pode tirar do coração da gente uma tristeza profunda?
     – Deus pode tudo isso e muito mais. A vida que Ele oferece é eterna. Está escrito na Bíblia, que é a Sua própria Palavra: “Todo aquele que n’Ele crer e for batizado, terá a vida eterna”. Quando nos arrependemos verdadeiramente de ter pecado e pedimos perdão, Ele não só nos perdoa como nos acolhe como filho. Faz assim como o senhor fez comigo. Eu estava com frio e o senhor me deu agasalho, estava com fome e o senhor me deu de comer, estava com sede e o senhor me deu de beber. Só tem uma diferença: quando se recebe alimento das mãos de Deus, jamais se sente fome, frio ou sede de novo.
   – Quer dizer que se eu acreditar em Deus, pedir perdão pelas coisas erradas que fiz, Ele se torna meu pai também? Vou procurar a Bíblia de que falas e ler com calma. Por hoje, já conversamos muito, amanhã continuaremos. Já mandei arrumar o quarto que era do meu filho para dormires. Vai descansar.
    Os dois caminharam juntos até o quarto do menino. O homem desejou-lhe boa-noite e seguiu só por um longo corredor.
     O dia amanheceu. A mesa do café foi posta. O homem sentou-se solitário. A criada, aproximando-se, informou:
    – Senhor, o menino foi embora bem cedo. Vestiu as roupas que tinha antes de chegar aqui, deixou as do André em cima da cama e saiu.
    – Ele deixou algum recado para mim? Exclamou nervoso!
    – Disse que o ama muito, e que todas as coisas que o senhor precisa podem ser achadas na biblioteca.
    O homem tomou café rapidamente. Num sorriso, que há muito tempo seu rosto não sorria, disse à criada:
    – Vem, vamos procurar um livro na biblioteca...
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com

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