domingo, 6 de outubro de 2013

Meninos de Rua


Capítulo II
Meninos de Rua
1ª Parte
A noite escura impõe um silêncio pesado. Uma fogueira de jornais sob a marquise de um prédio diminui o frio acalentado pelo hálito da brisa que sopra constante. Uma roda de meninos, sentados, estende as mãos em direção ao fogo, procurando um calor amigo. As chamas brincam entre seus dedos ágeis num carinho aconchegante. Ombro a ombro, seus corpos se tocam cerrando mais aquele círculo vivo.
         A garoa fina, insistente, dança frente aos refletores da rua. No chão, algumas poças d’água refletem, invertidas, imagens multicoloridas e alegres, de um anúncio luminoso escrito em néon.
         Um menino, em busca de agasalho, aproxima-se devagar. Chega mais perto do grupo, aperta as mãos uma contra a outra, esfregando-as, e fica observando aquele fogo já não tão forte quanto antes.
         O líder dos garotos do grupo, aparentando uns quatorze anos, olha de soslaio, puxa fundo uma baforada do cigarro de maconha que sustenta entre os dedos, e fala:
– Qual é a tua, maninho? Tá querendo encrenca? Qual é?!
O menino aproxima-se mais um pouco, e atentamente, continua a contemplá-los. Aparentavam de 8 a 15 anos de idade. O comportamento, entretanto, era de quem já armazenasse experiências de longos e incansáveis anos de vida e malícia.
A hierarquia entre eles saltava aos olhos. Apenas um tomava a iniciativa. Moreno, touca de meia azul enfiada na cabeça, cobrindo-lhe até as orelhas, deixava apenas parte de seus longos cabelos negros, arrumados em pequenas tranças, à mostra sobre o pescoço. Os olhos, tingidos de vermelho pela droga que estava usando, pareciam dar-lhe mais autoridade sobre os demais companheiros. As duas blusas de mangas compridas, sobrepostas em seu corpo, não apagavam o brilho de uma lâmina oculta na cintura, por baixo de uma bermuda preta. Aumentando a entonação de voz, esbravejou:
– Vais ficar aí parado? Que queres aqui? És algum alcaguete?
– Não, não sou. Estou apenas procurando um lugar para passar a noite. Essa garoa fina está incomodando muito.
– Tens alguma coisa para espantar a fome ou o frio?
– Não, não tenho!
– Nem cola, pontas de cigarro, ou quem sabe uma pedrinha das boas?
– Não – insistiu o menino –, não tenho nada.
– Como queres então ficar conosco? Terias que pagar. Cai fora, não perturba!
         O menino continuou ali parado esfregando as mãos e argumentou:
– O jornal de vocês está acabando. Não vão precisar de mais para manter o fogo aceso? Perto daqui vi muito papel e até pedaços de madeira de uma caixa; se eu trouxer...
O moreno da touca de meia azul olhou para os componentes da roda, e nos olhos de cada um deles, a votação silenciosa se completou.
– Vai buscar! Se for mesmo bastante, passarás a noite conosco.
         Alguns minutos se passaram. A garoa que se transformara em chuva fina continuava a esfriar e umedecer a noite. Arrastando uma caixa de madeira cheia de papéis – restos da limpeza de um escritório ali perto – , o menino chegou de volta.
         O fogo que aquecia o grupo já estava bem fraco. Rapidamente, dois levantaram-se da roda, retiraram o material da caixa e reavivaram as chamas. Alguns pedaços de madeira ajudaram a compor a nova fogueira.
         Uma menina, aparentando no máximo 10 anos, afastou-se um pouco do grupo, tirou de debaixo da blusa uma garrafa plástica cortada ao meio e apertou-a contra o rosto. Um cheiro forte de cola de sapateiro misturou-se à brisa fria da quase madrugada.
         O chefe do grupo, o moreno da touca azul, que empunhava entre os dedos outro cigarro de maconha, falou:
- Vem, senta conosco. A noite está só começando. Chega perto do fogo. Se fores mesmo um cara legal, poderemos até pensar em um teste para fazeres parte do nosso grupo.
         O menino sentou-se no chão como membro do círculo. O calor em suas mãos estendidas em direção ao fogo, fez com que em seus dedos arroxeados, voltassem a circular o sangue borbulhante da vida. A menina, isolada, continuava com o rosto mergulhado na garrafa de cola. Quase nem se mexia. Agora, uma vasilha de cachaça percorria de mão em mão pelo grupo inquieto.
         A noite se fez mais escura e mais fria, até que, preguiçoso, o sol começou a despontar com seus primeiros raios.
         Um a um do grupo levantou-se devagar quase sem forças para recomeçar o dia. A ressaca era evidente. Cachaça, drogas, cigarros, ainda embotavam suas mentes. Quase que como autômatos, dirigiram-se a uma praça em busca da água de um chafariz que os acordaria de fato.
         A menina que havia cheirado cola por boa parte da noite, mal conseguia andar. Os olhos vermelhos, raiados de sangue, não lhe davam a visão perfeita do dia. O sol que aquecia, também a incomodava. O garoto que se juntara ao grupo durante a noite, aproximou-se:
         – Você está bem?
         Ela voltou o rosto em sua direção procurando saber quem lhe falava. Os cabelos em desalinho desciam-lhe até os ombros. Eram muito lisos, muito negros, e emoldurando aquele rostinho pálido, salientavam o castanho claro de seus olhos. A blusa de algodão que lhe descia até o meio das coxas, mostrava a silhueta de seu corpo magro. Que queres? Quem és? Não te conheço...
– Ontem à noite estava procurando um lugar para passar a noite e encontrei vocês. Deixaram que ficasse e me aquecesse junto ao fogo.
– De onde vens? Fugiste de casa também?
         – Não, não fugi. Moro por aí; onde fico, é minha casa.
– Há quanto tempo estás nas ruas?
         – Não sei bem ao certo, mas pelo menos há dois anos. Por que tanta pergunta? O que estás querendo?
         O olhar de desconfiança mudou-lhe o semblante tornando-o quase agressivo. Com as mãos ágeis, arrumou o cabelo enrolando-o por sobre a cabeça e apressou o passo.
         – Espera, só quero conversar um pouco. Não quero nada, só conversar.
         Os dois acertaram novamente o passo. O chafariz da praça oferecia um jato de água límpida e fria. O lago que o envolvia, cercado de palmeiras imponentes, desenhava uma espécie de oásis natural. Alguns peixes pequenos transluziam seus corpos coloridos próximos ao fundo de areia.
Os dois agacharam-se; seus rostos refletiram-se no espelho d’água. Entreolharam-se. Trocaram um sorriso fraterno. Um banho improvisado restituiu-lhes parcialmente as energias.
         O rapaz da touca azul aproximou-se, franziu o cenho, e com voz rouca, determinou:
         – Vejo que ficaram amigos! Quero vocês dentro de uma hora no semáforo de sempre. Vamos precisar hoje de uma grana extra para acalmar aquele policial que nos persegue. Afinal, hoje é sexta-feira.
         – Tudo bem! – respondeu ela. Antes vou passar na feira e catar alguma coisa para comer. Estou com muita fome.
         – Posso ir junto? – indagou o menino. Também estou faminto.
         Não houve resposta. Caminharam juntos por algum tempo. Ele arriscou indagar:
         – Onde mora tua família?
         –Não tenho família, respondeu áspera e apressadamente.
         – Ninguém?
         – Acho que ainda tenho mãe em algum lugar por aí.
         – E teu pai, conheces?
         – Morreu quando eu tinha 6 anos. Caiu de um andaime de construção. Ele era bom. Não deixava faltar comida em casa. Trabalhava muito. E tu, tens pai?
         – Tenho sim, está no céu!
         De relance olhou para o rosto da amiga e percebeu que ela chorava. Caminharam lado a lado por mais alguns instantes e ele insistiu:
         – E tua mãe?
         – Moramos juntas por algum tempo. Ela saía cedo para trabalhar na casa de uma família e só voltava de noite. Pela manhã, eu ficava na escola e de tarde ficava em casa. Um dia, ela chegou mais tarde com um namorado. Não gostei dele.
         – Quem sabe se ela não queria só te arrumar outro pai que pudesse cuidar de vocês? Não seria bom?
         – Quem sabe!? O cara foi ficando, ficando, e um dia, foi morar conosco. No início foi até bom, mas de vez em quando chegava bêbado. Num desses dias, minha mãe não estava em casa e ele tentou deitar comigo. Minha sorte foi que consegui fugir. Ele estava muito porre. Só voltei quando mamãe chegou do trabalho.
         – Não contaste tudo?
         – Contei, mas ela duvidou. Acho que gostava muito dele e acabou ficando com raiva de mim. Um dia, ele tentou de novo. Fugi de casa e nunca mais voltei.
         – Pretendes morar na rua para sempre?
         – Claro que não. Isso é vida de bicho! Tenho esperança de um dia encontrar uma família que goste de mim, e quando crescer quero casar... ter filhos.
         – Verdade? Queres mesmo sair das ruas? Eu conheço um lugar onde algumas pessoas se reúnem aos domingos pela manhã e cuidam de gente como nós que não têm onde morar. Vamos lá ver como é?
         – Mas como chegaremos lá com estas roupas? Nem sapatos temos!
         – Ouvi falar também que lá eles aceitam as pessoas como são e do jeito que estão.
         – Tu vais comigo?
         – Vou. Também não gosto de morar nas ruas. Eles ensinam muitas coisas boas lá. Neste domingo iremos, então.
Os dois abriram um sorriso alegre e duradouro ante a perspectiva de deixarem aquela vida.
Chegaram à feira. Seus olhos brilhavam frente às frutas exibidas nos balcões das barracas que, lado a lado, formavam longos corredores. Andaram lentamente através deles sentindo o aroma gostoso e característico daquelas delícias. Chegaram a um grande pátio onde os caminhões entregam suas cargas. Foi lá, no meio das frutas amassadas ou podres, que são desprezadas no lixo, que fizeram seu desjejum. A fome era tanta que a escolha não pôde ser minuciosa.
         Já passavam das dez horas quando pararam no semáforo de costume. A menina aproxima-se de um carro de luxo. O motorista sacode o dedo em negativa ao pedido de uma moeda. Ela insiste, chega mais perto, e a negativa se torna mais veemente.
Outro veículo para no sinal vermelho. Mais um minuto de esperanças. Apressadamente aproxima-se da janela do motorista que baixou o vidro. Ouve algumas palavras e volta com uma expressão de rancor no semblante. O menino percebe as minúcias do desapontamento estampado na sua face; num repente, indaga:
         –  Que aconteceu? Por que essa raiva?
         – Aquele porcaria disse que me daria muito dinheiro... mas lá na casa dele. Já estou acostumada com isso, só que não estou à venda. Muitas garotas que aceitam esses programas, depois viram prostitutas; eu não quero ser assim.
         O dia se prolonga arrastado, cansativo. Perigosamente, entre os carros, esquivam-se ensaiando os passos ágeis de uma dança triste e macabra, guiados pelos ditames da vida.
         A luta para matar a fome é vencida, tendo como aliados restos de sanduíches e guloseimas desprezadas, surrupiados sorrateiramente dos pratos de bares.
         A tarde se insinua através de sombras mais escuras, e ventos mais constantes, à chegada da noite. O chefe do grupo aproxima-se devagar tentando ao máximo esconder a sua presença; dirige-se à menina:
         – Que tal o dia? O que vocês conseguiram? Descolaram a grana do guarda?
         Amedrontada, tentando justificar seu dia de pouco sucesso, respondeu:
         – Não consegui muita coisa. Só algumas moedas. Bem que tentamos.
         – Garanto que andaste recusando programas! As outras garotas da nossa patota todas aceitam. Já está na hora de começares. Hoje de noite vou te ensinar umas coisas.
         – Quando chegar a hora eu vou, ainda tenho medo desses caras.
         – Os outros também não arrumaram quase nada de grana. Tomei a carteira de um velho. Ele me agarrou. Fui obrigado a dar uma espetada nele para conseguir fugir. Nós éramos quatro. Acho que a polícia pegou um dos nossos. Vamos nos reunir debaixo da marquise assim que escureça. Lá conversaremos direito.
(continua)
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário