Capítulo
3
A
suicida
Parte I
O garoto magrinho andou pelas ruas até que encontrou o
sossego de uma praça. Cansado, faminto, procurou paciente um banco para sentar.
Anoitecia. Casais de namorados ocupavam a maior parte deles. Sob a ramagem de
uma touceira de bambu, divisou uma moça solitária e aproximou-se:
– Posso sentar um pouquinho com você?
Ela permaneceu imóvel, calada. Com os
olhos fitos em algum lugar distante, seus pensamentos, certamente, deslizavam
em paragens longínquas, aliados a algum sofrimento profundo. O vento que lhe
acariciava o rosto tripudiava de seus longos cabelos negros deixando-os em
desalinho. A maquiagem, desfeita por muitas lágrimas incontidas, não conseguia
esconder mais a tristeza daquela alma.
O menino sentou-se devagar no banco.
Olhou para a moça e entristeceu-se. Ela, percebendo-o, indagou:
– Que queres aqui, moleque? Não se pode
ficar mais sozinha em uma praça? Sai daqui, sai!
A criança sentiu naqueles olhos negros
que o fitavam a mágoa e a dor de uma profunda solidão. Retrucou:
– Não será por estar sozinha que você está tão triste?
– Que sabes da minha vida, moleque, para
que dês palpite? Vê se não amola!
Sem dar ouvidos aos insultos, retirou,
de uma pequena sacola que carregava, um pedaço de pão. Partiu-o ao meio; num gesto
de carinho, estendeu a mão para a moça:
– Aceita?
Afastando grosseiramente de si a mão que
lhe ofertava o alimento, bravejou:
– Achas mesmo que vou aceitar pão sujo
de um pivete como tu?
– Desculpe-me, moça, Não quis ofendê-la;
queria apenas ser seu amigo, conversar um pouquinho.
O vento frio embalava metódico as copas
das árvores da praça. As luzes dos postes se acenderam. Poucos transeuntes já
se faziam presentes no local.
– Escuta aqui, guri – falou a moça:
quantos anos tens?
– Já tenho 10 – respondeu tentando
esboçar um sorriso amável.
– Tens casa? Onde moras? – Indagou
quebrando um pouco a rispidez da voz.
– Por aí, moça. Onde paro é minha casa.
– Não tens medo de andar sozinho pelas
ruas?
– Eu não ando sozinho, moça, Deus me
protege. E você, onde vive?
O peso da solidão agigantou a tristeza
da jovem, que fitando o rosto pálido e magro daquela criança, soluçou:
Moro perto daqui, mas não volto mais lá.
Nem para lugar algum...
– É muito ruim ter uma casa para morar?
– Eu queria mesmo era uma família. Acho
que nunca tive, apesar de morar com pai e mãe dentro de uma casa enorme e rica.
A criança ajustou com as mãos a blusa
fina que lhe envolvia o peito, tentando agasalhar-se do frio, baixou-as, e,
segurando as da moça, timidamente balbuciou:
– Será que em uma casa grande, bonita,
não cabem paz, amor, felicidade?
Retirando as mãos da criança da sua,
indagou num repente:
– Que sabes de felicidade ou paz? Não
vives nas ruas?
– É verdade, o mundo é minha casa, mas
sou feliz. Tenho um amigo que não me larga um só momento.
– Mas agora estás só. Não vejo ninguém
contigo.
– Já lhe disse moça, ando com Deus. Ele
é meu amigo; por isso sou feliz, tenho paz. Feliz porque vivo em harmonia com
esse Deus maravilhoso, o mesmo que criou os céus e a terra.
– Já ouvi falar desse teu Deus, mas
nunca ninguém me apresentou a Ele. Agora é tarde... acho que és a última pessoa
que conheci.
O menino levantou do banco, postou-se em
pé bem em frente à moça. Olhou-a fixamente no rosto por alguns instantes, sem
dizer uma só palavra. Ela inquietou-se:
– Que foi? Que estás olhando?
– Nunca lhe passou pela cabeça que Deus ama você?
Ninguém lhe disse, alguma vez, que Ele se importa com todos nós? A vida é uma
dádiva, não podemos desprezá-la ou jogá-la fora por qualquer motivo.
A moça pousou as mãos nos ombros do
menino, procurando entender no fundo daqueles olhos inocentes o que seu coração
estava tentando dizer-lhe.
– Escuta aqui, garoto, nada está dando
certo comigo. Minha família não me entende, briguei com meu namorado, decidi
acabar com esta porcaria de vida que levo e tu vens dizer que Deus se importa
comigo?
– Você já deu alguma chance para Deus lhe fazer feliz?
Volte para sua casa, entre no seu quarto, ore, peça sinceramente ajuda. Não vai
fazer diferença você tirar sua vida hoje ou amanhã.
A moça retirou as mãos dos ombros do menino, tentou
arrumar seus próprios cabelos longos que o vento teimava em desalinhar;
refletindo na sinceridade daquelas palavras que ouvira, resmungou:
– É, tens razão. Mais um dia, menos um
dia, não faz diferença. Amanhã verei o que faço. Queres dormir em casa hoje? Lá
tem muito lugar... e comida também.
É bem provável que a moça não tenha
notado o sorriso de alegria daquela criança. Os dois puseram-se a caminhar
juntos. As lâmpadas dos postes da praça tentavam iluminar as trilhas já
soturnas do lugar. A monotonia daquele caminhar foi interrompida bruscamente:
– Hei moça, passa para cá a grana!
Os dois pararam de chofre. Ela,
apertando a bolsa contra o peito, hesitava em cumprir a ordem do assaltante.
Seus olhos, fixos no revólver que reluzia à
sua frente, emprestavam àquele rosto um semblante misto de surpresa e
pavor.
O menino adiantou-se. Colocando-se entre
a moça e o assaltante, pediu:
– Amigo, não faça isso. Deixa-nos ir em
paz.
O bandido, inquieto, nervoso, não
conseguia manter a arma firme na mão. Vociferando grunhiu:
– Sai da frente moleque, não quero nada
de ti. Acho que além da bolsa vou lhe fazer um agrado. Ela é muito bonita.
A moça, num repente, querendo livrar-se
daquela ameaça, correu tentando fugir. O estampido surdo de um tiro calou a voz
que gritava por ajuda.
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com
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