domingo, 29 de dezembro de 2013

A Bíblia


O Andarilho
Capítulo final
A Bíblia

         Anoitece.
Em uma pequena igreja, no fim de uma rua pouco movimentada, ouve-se um cântico de louvor a Deus. Um hino suave de adoração.
         As poucas lâmpadas dos postes públicos, que tentam iluminar a rua, conseguem emprestar ao ambiente apenas uma penumbra soturna.
         Do pequeno templo, a luz gerada, como que abraçada ao louvor reinante, atravessa as janelas e se projeta aos céus.
         A noite se adianta nas horas. O culto termina. Em grupos, os fiéis pouco a pouco buscam seus lares.
         Um jovem, segurando nas mãos uma Bíblia, ao dobrar uma esquina é abordado por um marginal:
         – Fica quieto aí, meu chapa. Passa a grana.
         O rapaz parou assustado. Abraçou-se ao livro sagrado. Em silêncio, olhou para o meliante. Sentiu um frio repentino no corpo seguido de um suor gelado que lhe brotava da testa.
         O bandido insistiu:
         – Não tenho toda noite para ficar aqui contigo. Passa logo a grana, pateta.
         O rapaz olhou mais uma vez para o assaltante. Percebeu seus olhos avermelhados brilhando, mesmo naquela penumbra. Os cabelos, escorridos em tranças mescladas com algumas miçangas coloridas, desciam-lhe até os ombros. A pele clara do rosto, marcada por espinhas, realçava a barba negra e rala por fazer. Nas mãos, com uma tatuagem multicor em forma de dragão, sustentava uma arma que refletia a pouca luz do lugar.
         Com esforço o rapaz falou:
         – Não tenho dinheiro, moço, nem para o ônibus.
         – Escuta aqui, meu chapa, se pensas que me enganas, estás frito. Se não tiveres grana vais morrer. Já viste alguém morrendo?
         O rapaz, sentindo o hálito de cachaça quando o bandido falou encostando a arma em seu rosto, insistiu:
         – Não estou enganando. Não tenho dinheiro nen-hum . A única coisa que tenho é minha bíblia.
         – Achas que sou otário para me contentar com uma bíblia? Quero grana.
         O rapaz ficou em silêncio por mais um momento. Com muito receio falou:
         – A paz que eu sinto na minha vida, é porque sigo a Palavra de Deus. Não porque tenha dinheiro. A bíblia é a Palavra de Deus. Levo uma vida modesta com minha mãe.
         O assaltante, enraivecido, gritou descontrolado:
         – Eu te avisei... não sou otário...
         E, olhando nos olhos do rapaz, disparou a arma duas vezes contra seu peito. Antes que fugisse abaixou-se, juntou a bíblia. Jogando-a sobre o corpo inerte do rapaz, debochou:
         – Leva a Palavra do teu Deus contigo.
         Um menino de aparência franzina, cabelos negros, pele clara, que passava naquele momento e que presenciara o fato, aproximou-se do corpo caído. Ajoelhou-se ao lado. Fitou-lhe nos olhos e procurou ouvir algumas palavras que foram balbuciadas:
         – Por favor, entregue esta bíblia para minha mãe. Diga-lhe que a amo muito.
         O menino percebeu que a luz daqueles olhos se apagaram. Tomou nas mãos o Livro Santo. Lentamente, afastou-se.
         No canto de uma sala modesta, sentada em uma velha e desgastada cadeira de balanço, uma senhora, aparentando setenta anos de idade, fazia tricô.
         Seus cabelos brancos, enrolados displicentemente no alto da cabeça, o rosto sulcado pela vida, os óculos amarrados com barbante vermelho sustentando a haste de apoio, exibiam a situação de modéstia em que vivia.
         Atraída pelas palmas batidas à sua porta, desviou os olhos do pano que tecia. Deparou com um menino, de pé, segurando uma bíblia nas mãos.
         Olhou-o detalhadamente. De maneira gentil, falou:
         – Entre, meu filho, a porta está aberta. Que você quer?
         O menino percebeu bondade naquele rosto triste, que sombreado momentaneamente por uma réstia de luz, atravessava, furtiva, a janela entreaberta às suas costas.
         – Bom-dia – exclamou enquanto se aproximava da velha senhora –,vim trazer-lhe esta bíblia.
         A mulher empalideceu. Esperou que ele chegasse mais perto. Num gesto repentino, quase que arrancou o livro das mãos do garoto. Abriu-o com ansiedade. Pôde ver algumas páginas ainda manchadas de sangue.
         Apertando o livro contra o peito, perguntou:
         – Sei que me achaste pelo endereço que está escrito aqui na capa, mas como conseguiste isto?
         O menino olhou-a com carinho e explicou:
         – Mês passado, num domingo à noite, depois de tomar um lanche que é servido pelo pastor da igreja, no encerramento do culto, saí procurando um lugar para dormir. Foi quando ouvi dois tiros. Aproximei-me. Vi um homem que se afastava correndo de um corpo estendido no chão.
         A anciã interrompeu seu pequeno interlocutor:
         – Não viste o rosto dele? Deu para reconhecer quem era?
         Apesar de menino, compreendeu o porquê da fisionomia de angústia que se retratou naquela senhora.
         – Estava escuro, não deu para reconhecer, não, senhora – , respondeu de pronto. Continuou sua narrativa:
         – Percebi que aquele rapaz ainda estava vivo. Abaixei-me para tentar socorrê-lo, mas não houve mais tempo. Ele apenas disse antes de morrer: “entrega esta bíblia para minha mãe. Diz que eu a amo muito”.
         Lágrimas pesadas fluíram dos olhos cansados daquela mulher. Ela segurou com uma das mãos a peça de tricô que tecia e que havia deixado cair em seu colo. Com a outra, a bíblia. Levantou-se devagar da cadeira de embalo. Andou em direção a uma mesa desgastada por décadas, ornada com um vaso de flores já sem vida, deixou os objetos e buscou na velha geladeira um pouco de água.
         O garoto, em silêncio, assistiu àquele ritual de dor, de saudade, quase sem mover um músculo que fosse.
         Andou mais um pouco em direção à janela, abriu-a de par em par. Enquanto a brisa que soprava suave acarinhava-lhe os cabelos nevados, falou devagar:
         – Era um filho bom. Trabalhava duro para que não faltasse nada dentro de casa... Estudava de noite... Era carinhoso, era temente a Deus.
         Fez uma pausa como que buscasse forças para continuar:
         – Freqüentava a igreja, fazia parte do coral. Estou procurando entender por que Deus o levou.
         Timidamente o menino argumentou:
         – Deus sempre tem um propósito em tudo o que faz. Custa-nos por vezes, entender os seus desígnios.
         – Meu filho, sirvo a Deus por muitos anos. Não estou revoltada... a dor que sinto é de saudade. Oro pedindo forças para suportar essa provação. Mas por que meu filho...
         O menino apenas olhou em seus olhos. Ela continuou:
         – Confesso que tenho vontade de acabar também com esse criminoso.
         – Entendo sua revolta, senhora, mas Deus não disse para amarmos nossos inimigos?
         – Como poderei amar o homem que matou meu filho? Será possível isso?
         O menino a segurou em uma de suas mãos. Mansamente falou:
         – Tudo poderia começar com um perdão, a senhora não acha? Jesus na hora de sua morte pediu que seu Pai perdoasse seus algozes. E nós fomos esses algozes através do pecado. Ele morreu para nos salvar.
         Ainda de frente para a janela, ao carinho da brisa que não parava de soprar, enxugou as lágrimas do rosto com as mãos. Continuou:
         – Onde moras, guri?
         O menino, que a acompanhara até a janela, retrucou:
         – Moro em vários lugares. Onde paro é minha casa.
         – Estás dizendo que moras nas ruas? Não tens casa? Não vês que é perigoso? Não viste o que aconteceu com meu filho?
         O garoto ficou em silêncio por um breve instante. Olhou-a carinhosamente para responder:
         – Tenho muitas casas. Onde me recebem, moro.
         A senhora voltou para a cadeira de embalo. Ofereceu um banquinho para o menino. Com a voz embargada, continuou:
         – Soube que a polícia prendeu o homem que matou meu filho. Ele confessou. Tem apenas 19 anos. É viciado em drogas. Aos 17 anos matou um outro menino de 16 em uma briga de gangues. Havia fugido da casa de detenção de menores há poucos dias quando matou meu filho.
         O menino que ouvia atento, calado, ajeitou-se no banco, e falou:
         – Os homens seriam diferentes se procurassem mais a Deus.
         A mulher observou em seguida:
         – Vejo que alguém já te falou de Deus.
         Os dois mantiveram uma longa conversa. Ao se despedirem, a senhora falou:
         – Gostaria que voltasses outra vez para continuarmos a prosa. Vem amanhã cedo tomar café comigo.
         O menino sorriu, beijou as mãos da setuagenária. Ganhou as ruas.
         A noite caiu silenciosa sobre aquele lugarejo.
Na humilde casa, a velha senhora sentou-se à frente de  uma  pequena  televisão.  Entre  cochilos,  uma notícia
despertou-lhe a atenção: uma rebelião na cadeia local deixou alguns mortos. Entre os vários feridos, o assassino de seu filho.
         O dia estava clareando quando a mulher abriu a porta da casa. Do outro lado da rua pôde divisar a silhueta magra do seu visitante do dia anterior. Chamou-o acenando com a mão.
         O menino atravessou a rua, aproximou-se da velha senhora. Cumprimentou-a:
         – Bom-dia!
         Com um breve sorriso, convidou o guri para entrar:
         – Vem tomar um café. Está quentinho. Fiz há pouco.
         A mulher fez com que o menino sentasse à mesa. Serviu-lhe, em uma caneca colorida, café com leite. Serviu-lhe também um bom pedaço de pão esquentado com manteiga. Sentou-se do outro lado da mesa. Ficou observando a criança através da fumaça que saía de sua caneca.
         O menino percebeu aquele olhar de saudade e comentou:
         – Está se lembrando de seu filho, não é verdade?
         Ela ficou em silêncio. Depois falou:
         – Tens razão. Estou me lembrando do meu filho. Sempre lhe servia café nessa caneca. Era a sua preferida. Desde menino, assim da tua idade, ele sentava nesse lugar e usava essa caneca que ganhou de aniversário quando completou 10 anos.
         O guri sorriu, bebeu um gole do café, deu uma mordiscada no pão. A mulher sorriu também. Em seguida levantou-se, foi até o menino, abraçou-o carinhosamente. Balbuciando falou:
         – É incrível, comes exatamente como ele comia.
         A mulher voltou a sentar-se do outro lado da mesa. Continuou a falar:
         – Foi Deus que te enviou aqui comigo. Depois que conversamos ontem, fiquei me sentindo muito melhor.
         – Fico feliz por isso – disse o rapazola sorrindo.
         A mulher esperou pacientemente que o guri terminasse de tomar café para comentar:
         – Hoje precisarei sair de casa. Vou até o hospital municipal. O homem que matou meu filho tentou fugir da cadeia e foi ferido. Preciso falar com ele. Tenho algo para lhe entregar.
         – Posso ir com a senhora, se desejar.
         Não demorou muito para que os dois saíssem juntos.
         No hospital, o menino ficou aguardando na porta enquanto a velha senhora foi conduzida até a enfermaria na qual se encontrava, algemado no leito, o enfermo detento.
Aproximou-se devagar. De pé à cabeceira do leito, olhou nos olhos daquele homem. Viu ali retratada a alma da marginalidade, do desamor, do ódio que habita em corações vazios e descrentes.
O marginal inclinou a cabeça em sua direção. Falou desconfiado:
– Eu lhe conheço, dona?
– Não, não me conheces – respondeu de pronto. E continuou:
– O rapaz que mataste quando saía da igreja era meu filho.
O marginal interrompeu:
– Dona, devo dizer-lhe que já cometi muitos erros em minha vida; até matei. Não volto atrás. A única coisa da qual me arrependo é de ter morto seu filho. Até hoje sinto remorso pelo que fiz. Se pudesse desfazer isso...
A mulher, entristecida, falou:
– Vim aqui para dizer que te perdoo pela morte do meu filho. Vim trazer-te também um presente.
Estendendo a mão em sua direção, ofereceu-lhe a bíblia que carregava.
O marginal olhou-a nos olhos mais uma vez. Com a mão que estava livre, recebeu o Livro Santo. Olhou-o como que assustado e falou baixinho:
– Ele estava com esse livro quando o abordei. Foi nele que se abraçou como que pedindo proteção.
A senhora, com lágrimas nos olhos, retrucou:
– Todos morreremos um dia. Não importa a hora nem quando. Importa se estamos ou não com Deus e Ele esteve com meu filho em todos os momentos de sua vida. Agora estão mais juntos que nunca.
         A mulher, a passos lentos, se afastou do leito do marginal, mas viu que uma lágrima sorrateira escapou-se-lhe dos olhos quando percebeu que o livro estava manchado com o sangue que maldosamente derramara.
         Ao encontrar o menino na saída do hospital, falou com ternura:
         – Meu filho, foi muito bom ter-te conhecido, conversado contigo. Estavas com a razão. Não sabes o quanto me fez bem perdoar esse moço. Sinto-me aliviada. Vamos para casa.
         Aquela senhora cansada pela vida passou a mão por cima dos ombros de seu pequeno acompanhante. Seguiram conversando.
         Almoçaram juntos. Antes que a noite caísse, o menino despediu-se, levando consigo, em seu pequeno bornal, uma antiga e colorida caneca que recebera de presente daquela senhora.
Mais uma vez, sem rumo, abraçou o caminho incerto das ruas.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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