Capítulo
6
O
Prepotente
O menino caminhava pelas ruas da cidade, passo a
passo, bem devagar. Seus pés, quase congelados, doíam apoiados em uma velha e
rota chinela de couro. Um vento frio aumentava-lhe o mal-estar causado pela
fome. Anoitecia.
O pequeno movimento das ruas se
justificava pela garoa fina e esfumaçada que fluía no ar, iluminada tão-somente
por lâmpadas dos postes públicos.
Um grupo de pessoas cercava o corpo de
um jovem, vítima de um atropelamento por carro em uma das avenidas mais importantes
da cidade. O menino passou por entre os curiosos... aproximou-se do corpo.
Acocorou-se, por um momento, ao seu lado.
Ali estava um rapaz aparentando uns
dezoito anos. Os cabelos negros manchados de sangue não conseguiam cobrir o
grande ferimento em sua cabeça. Os olhos entreabertos revelavam uma expressão
de súplica. O menino tocou-lhe suavemente a testa e balbuciou algumas palavras
ininteligíveis. No mesmo instante, alguém entre os presentes o repreendeu
asperamente.
Ele levantou-se, seguiu em direção a um
rico e imponente hospital do outro lado da rua. As portas de vidro iluminadas
de baixo para cima aumentavam a impressão de luxo, de grandeza, daquele local.
Aproximou-se do porteiro que se protegia do tempo pelo lado de dentro da porta.
Hesitante, falou:
– Senhor, ali do outro lado da rua, um rapaz precisa
de um médico. Está muito ferido, pode chamar algum?
O homem, olhando para a criança,
desdenhou:
– É teu parente o rapaz do acidente?
– Não, não é não senhor – respondeu o
menino.
A garoa fina continuava a cair
aumentando o frio que o vento acariciava. Seus cabelos negros, ralos, estavam
tão ensopados quanto a velha blusa de meia que se colara ao seu corpo.
O porteiro, através da porta
entreaberta continuou:
– Garoto, acho bom ires andando daqui.
Este é um hospital particular. É só para quem tem grana, muita grana. Não temos
convênios com nenhuma instituição de caridade. Cai fora!
O porteiro ainda falava quando se
aproximou um homem vestindo calça e jaleco brancos. Ouvira parte do diálogo. Perguntou:
– Que é que tu queres mesmo garoto? Sou
médico.
Com paciência explicou ao doutor:
– Senhor, do outro lado da rua um rapaz
foi atropelado por um carro. Está jogado no asfalto. Os ferimentos são muitos,
ele precisa urgente de atendimento médico. Talvez tenha pouco tempo de vida. O
senhor talvez possa salvá-lo.
O médico, esboçando um sorriso irônico,
comentou:
– Achas que vou sair na chuva, para
cuidar de alguém que não conheço, que talvez não vá nem me pagar? Sou dono
deste hospital. Não o construí fazendo caridade. Olha para mim, vê se sou homem
de perder tempo ou dinheiro.
O garoto olhou verdadeiramente para
aquele homem. Viu nos seus cabelos lisos e negros, bem arrumados, o brilho
artificial de algum cosmético importado. Na face, um sorriso zombeteiro
cristalizado nos olhos claros e frios dos presunçosos. Envolvendo seu pescoço,
uma grossa corrente de ouro, sustentando um crucifixo cravejado de brilhantes,
repousava sobre o peito. Um relógio de ouro maciço pesava em seu pulso
esquerdo. No coração, não viu solidariedade, não viu amor... a alma estava
vazia.
O garoto afastou-se. Em um ponto de
táxi próximo, com ajuda de um motorista, chamou uma ambulância.
De volta ao local do acidente, ao lado
do rapaz caído, esperou o socorro que não tardou em chegar. A equipe de resgate
o transportou até o Pronto Socorro Público.
Os médicos plantonistas decidiram pela
cirurgia. O sangramento era deveras abundante. Havia um traumatismo
craniencefálico. Quatro horas depois o paciente foi levado ao CTI.
Naquele hospital imponente, de portas
de vidro iluminadas de baixo para cima, um celular tocou insistentemente. Eram
três horas da manhã. Um homem atende:
– Alô!
– É o sr. José Reis?
– É sim; sou o Doutor José Reis –
respondeu de maneira arrogante. Diga!
A voz do outro lado da linha,
hesitante, prosseguiu:
– Doutor, aqui é do Pronto Socorro. O
senhor é o pai de Evaldo Reis?
– Sou sim... por quê?
– Ele foi atropelado quase em frente ao Hospital São
Lucas. Foi operado. Está no CTI.
Uma pausa angustiante interrompeu o
diálogo, porém logo o Dr. José Reis insistiu:
– Como foi isso? Quando foi o acidente?
– Aconteceu logo ao anoitecer. Não sei
como foi, mas o garoto que providenciou a ambulância está aqui, talvez saiba
lhe dizer alguma coisa.
Outra vez o Dr. José Reis prendeu a
respiração sem acreditar no que estava ouvindo. Falou angustiado.
Estou indo...Estou indo!
Em pouco tempo entrou no Pronto
Socorro, quase que correndo. Dirigiu-se diretamente ao CTI. Identificou-se como
médico. Pôde ficar ao lado do filho.
Observou, inerte, o vai-e-vem do
aparelho que mantinha o rapaz respirando. Uma bandagem na cabeça cobria-lhe
parcialmente o rosto. Por alguns minutos ficou em silêncio, com a garganta
seca. Não teve coragem para derramar uma lágrima sequer. Teve certeza de que
havia negado socorro para seu próprio filho, quando um menino, desconhecido,
tentava socorrê-lo.
Um outro médico aproximou-se, colocou
as mãos em seus ombros e falou, tentando consolar:
– Sinto muito, amigo, sinto muito. Não
adianta esconder a gravidade do caso porque, como médico, você bem sabe o que
pode acontecer. Se ele tivesse sido atendido mais rápido, talvez tivesse alguma
chance. Agora...
Aquelas palavras, em vez de consolo,
cravaram em seu coração o mais dorido dos sofrimentos. Seu rosto pálido recebeu
de sua testa algumas gotas de angústia em forma de suor.
Por uns momentos ainda ficou ouvindo os
“bips” cadenciados que marcavam o compasso dos batimentos cardíacos do rapaz.
Na consciência, ouvia o eco das palavras que dirigiu a um pequeno mendigo na
porta de seu hospital: “Achas que vou sair na chuva, para cuidar de alguém que
não conheço, que não vai nem me pagar?”
(a
conclusão será publicada na próxima semana)
Pr. Antonio Jorge
ajorgefs@gmail.com
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