terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O Prepotente (final)


O Prepotente
Capítulo 6
Parte final

         A dor era tão forte que não conseguia chorar. Lentamente afastou-se. Sem saber o que fazer, dirigiu-se a uma sala de espera próxima da entrada principal. Sentou-se em uma poltrona desgastada, tirou os óculos, enxugou-os com um lenço. Num relance, reconheceu a figura magra do menino que na porta de seu hospital lhe pedira ajuda. Ele estava sentado desconfortável em um canto da mesma sala.
         Fitou-o atentamente. Hesitou em levantar-se quando os olhos do guri se fixaram nos seus. Baixou a cabeça. Mergulhou a ponta  dos  dedos  em  seus  cabelos  negros,
agora desalinhados.
         Ficou assim por um longo período de tempo. Levantou a cabeça quando alguém foi chamado para comparecer ao setor médico, pelo sistema de alto-falantes instalados nos altos das paredes de cada sala do prédio.
         Outra vez seus olhos cruzaram com os do menino. Num impulso, levantou-se da poltrona. Dirigiu-se até ele. Com a voz rouca, embargada, perguntou, embora já soubesse a resposta:
         – Foste tu que falaste comigo na porta do meu hospital?
         O menino olhou-o com ternura e respondeu:
         – Fui eu, sim, senhor.
         Num repente, inquiriu outra vez:
         – De onde conhecias meu filho?
         – Eu não o conhecia. Quando o vi pela primeira vez ele estava ali no asfalto, sangrando, precisando de ajuda. Por isso procurei alguém.
         Mais uma vez o Dr. José Reis passou as mãos na cabeça, depois no rosto, como se quisesse livrar-se da máscara de um pesadelo. Sob o peso da realidade, deixou escapar quase que um desabafo:
         – Como alguém pode tentar ajudar uma pessoa que nunca viu na vida? Como se pode ser tão bobo a ponto de mudar de rumo por causa de um desconhecido? Fizeste isso para ganhar algum dinheiro?
         O menino levantou-se deixando na cadeira de plástico a marca de sua roupa molhada. Olhou para o homem que o argüia e falou:
– Doutor, o dinheiro não é a coisa mais importante deste mundo.
Dizendo isso, andou a passos miúdos rumo à porta de saída do Pronto Socorro.
         Já na calçada da rua o homem o alcançou. Num tom de conciliação, indagou:
         – Onde moras? Quem é teu pai?
         O menino parou, abraçou a si mesmo tentando afastar o frio. Respondeu:
         – Onde paro é minha casa. Meu pai mora no céu.
         – Queres dizer que não tens casa nem pai e que moras na rua?
         – O senhor não entendeu. O mundo inteiro é minha casa. Meu pai está no céu.
         O homem pensou um pouco. Insistiu em conversar:
         – Vem até minha casa. Minha mulher está viajando; deve chegar amanhã cedo. Já a informei do acidente. Vamos comer alguma coisa.
         O menino sorriu discretamente, mas não o suficiente para que não fosse percebido pelo doutor. Antes que ele lhe fizesse alguma pergunta, completou:
         – O senhor não me conhece. Quer me levar para sua casa, matar minha fome... Não tenho dinheiro. Por que faz isso?
         O Dr. José Reis tossiu sem jeito. Riu também discretamente tentando disfarçar o embaraço, mas continuou:
         – És um menino maduro demais para os teus, talvez dez anos. Queria te conhecer melhor. Freqüentas alguma escola?
         – Aos domingos vou a uma igreja. O pastor de lá tem um grupo de jovens que ensinam nas Escolas Dominicais.
         O homem insistiu no convite para que o rapazinho o acompanhasse à sua casa. Seguiram juntos até o carro estacionado ali nas proximidades, onde um motorista esperava paciente.
         Não demorou muito para que chegassem. Um segurança abriu a porta do automóvel. Os dois saíram. Em seguida entraram na luxuosa casa.
         Uma criada os recebeu na sala. De imediato, recebeu ordens do Dr. José Reis:
         – Leva meu amiguinho para tomar um banho. Prepara-lhe um bom prato de comida. Providencia também roupas secas para ele.
         A criada afastou-se dali levando a criança pelas mãos. O médico sentou-se em um sofá. Sem querer, parou seus olhos no sorriso alegre de seu filho, imortalizado em um retrato colorido, em cima de um piano.
         Há muito tempo que ele não chorava. Seus olhos se avermelharam. Duas lágrimas quentes beijaram-lhe a face. Num gesto repentino enxugou-as rapidamente com as mãos, como se quisesse esconder algum sinal de fraqueza.
         Pelo telefone soube que seu filho continuava com o mesmo quadro clínico instável, respirando por aparelhos. A qualquer momento aquele coração jovem poderia parar de lutar.
         O dia amanheceu nublado, muito frio. Uma senhora bonita entrou pela porta da sala, muito apressada. Tirou o casaco, jogou-o sobre o sofá. Aos gritos chamou pelo marido:
         – José... José...
         Com a voz cansada, saindo da cozinha onde ele e o menino tomaram café, respondeu:
         – Estou aqui. Estava te esperando para irmos ao hospital.
         – Que aconteceu ao nosso filho? Quem é esse garoto?
         Tentando mostrar-se calmo, falou:
         – Ele ajudou nosso filho logo após o acidente. Vamos ao hospital. No caminho te conto.
         O infante olhou para a mulher. Os cabelos pintados de um amarelo intenso contrastavam com o castanho das sobrancelhas. A pele lisa da face realçava uma visível modificação no nariz afilado. Os lábios carnudos, úmidos, completavam o desenho daquele rosto artificial. Um decote mostrava, generosamente, um volumoso par de seios, soltos e sensuais, sob uma blusa de seda vermelha transparente. A calça “jeans”, apertada, detalhava, nitidamente, os contornos curvilíneos daquele corpo bem tratado. Talvez, quem sabe, essa mulher, também possa hoje justificar a linguagem figurada de “sepulcro caiado”, usada um dia por Jesus.
         Com voz tímida de criança, o menino, balbuciou:
         – Bom-dia, senhora.
         Num repente de grosseria, desabafou:
         – Como queres que eu tenha um bom dia se meu único filho está morrendo num hospital?
         – Desculpe, senhora, – e continuou: – às vezes, quando se pensa que está tudo perdido, encontra-se uma solução. O que é impossível aos homens é possível para Deus.
         – Quem és tu, moleque, para me falares de Deus? Que Deus é este que deixou meu filho ser atropelado como se fosse um cachorro de rua?
         – Sou filho de Deus, do mesmo Deus que a ama e que pode salvar a vida de seu filho agora.
         A mulher resmungou:
         – Filho de Deus... Filho de Deus... Vai ver que nem conheces teu verdadeiro pai.
         O menino olhou naqueles olhos verdes que derramavam ira mais que tristeza, e disse:
         – Todos podemos ser filhos de Deus. É só aceitá-Lo como Senhor salvador de nossas vidas.
         – Pareces mais um filho de pastor dessas igrejinhas de canto de rua, tentando convencer alguém de que Deus é bom. Bom é o dinheiro que nos dá tudo de que precisamos.
         No mesmo tom de meiguice o menino perguntou:
         – E quanto a senhora vai pagar pela saúde de seu filho?
         A mulher irritou-se muito. Gritou:
         – José, põe esse menino para fora de casa. Não sei como o deixaste entrar.
         O marido, que estava calado escutando a conversa, interferiu:
         – Mulher, foi esse menino que ajudou nosso filho por ocasião do acidente. Eu mesmo, sem saber, neguei essa ajuda. Depois te explico, mas quero que saibas de que o fato serviu para que eu refletisse muito.
         – Tu, que só pensas em ganhar dinheiro, refletiste muito? – disse a mulher em tom de zombaria.
         – Este garoto me ajudou nisto. Acredito que Deus pode, sim, salvar nosso filho. Percebi isso ontem de madrugada. Eu não rezava desde pequeno. A atitude desse menino me fez ver que Deus existe mesmo.
         A mulher olhou incrédula para o marido, andou um pouco em direção à porta e parou. Ouviu quando o menino perguntou ao seu marido:
         – Dr. José, o senhor acredita mesmo que Deus pode curar seu filho neste momento?
         – Acredito sim, do fundo do meu coração. Completando, disse: – agora vou até o hospital. Quero que me esperes aqui.
         O menino sorrindo feliz, disse:
         – O seu filho vai ficar bom; torne-se também um filho de Deus, se for da sua vontade.
         O homem esboçou um sorriso; saiu com sua mulher para o hospital.
         Na ante-sala do CTI, um seu colega médico aproximou-se do casal. Falou descrente:
         – Amigo, não sei explicar o que aconteceu com seu filho. Até duas horas atrás, eu jurava que ele não viveria nem mais trinta minutos. De repente abriu os olhos, reagiu aos aparelhos e agora está respirando por si só. Tenho certeza de que ele vai ficar bom.
         O Dr. José Reis, sem dizer uma só palavra, olhou para sua mulher. Abraçou-a chorando. Ela, assustada com o que estava acontecendo, perguntou ao marido?
         – Quem era aquele menino?
         Os dois choraram ainda abraçados. Providenciaram, em seguida, a remoção do rapaz para seu próprio hospital.
         Quando chegaram a casa, perguntaram quase juntos à criada que os recebeu:
         – Onde está aquele menino que estava aqui conosco?
         A serviçal respondeu intrigada:
         – Não sei não, senhor. Deixou a blusa que lhe dei ontem em cima da cama, pegou as roupas dele, que já estavam secas, e foi-se embora.
         Os dois ainda correram até a porta da rua, mas não encontraram ninguém.
         Quando voltaram, a criada se aproximou dizendo:
         – Ele deixou um recado.
         Apressada, a mulher instou:
         – Fala logo... que recado?
         – Disse que Deus sempre estará disposto a perdoar àqueles que o buscarem de todo o coração. Disse também que nunca é tarde para se recomeçar uma vida.
         O casal se abraçou. O Dr. José Reis falou:
         – Precisamos realmente conhecer melhor a Deus e recomeçar a viver.
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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