domingo, 22 de dezembro de 2013

O Malfeitor


O Malfeitor

O menino sentou-se à beira da calçada. Estava muito cansado. Anoitecia.
Pessoas, saindo do trabalho, paravam para fazer compras de última hora. Outros usavam rápido o caixa-eletrônico.
Num relance, um carro pára. A porta abriu-se. Três homens, encapuzados, saem portando escopetas e invadem o estabelecimento comercial. Um quarto homem ficou aguardando no veículo com o motor ligado.
Nervoso, enquanto esperava, viu que o menino, sentado na calçada próxima, o observava. Tentou desviar o rosto para não ser reconhecido.
Alguns momentos depois seus companheiros retornaram segurando alguns sacos. Entraram rápidos no carro, que arrancando veloz, perdeu-se nas ruas da cidade.
O menino presenciou o tumulto que os assaltantes deixaram como rastro. Em pouco tempo vários policiais chegaram ao local. Após interrogarem  algumas  vítimas,


um deles se aproximou do garoto. Num tom nada amistoso, perguntou:
– Escuta aqui, moleque, viste alguma coisa?
O garoto olhou para o homem, examinando-o com cuidado. O cenho franzido, os olhos negros amendoados, a cicatriz no pescoço que a gola da camisa não conseguia esconder, insinuavam-lhe uma fisionomia desagradável, porém familiar.
O homem insistiu na pergunta:
– Presta bem atenção, seu pulguento, viste ou não alguma coisa aqui?
O garoto magro, franzino, fitou com brandura aquele rosto hostil que lhe argüia. Respondeu:
– Senhor, eu vi quando um carro azul parou perto de mim. Desceram três homens encapuzados. O motorista ficou esperando. Depois voltaram, entraram no carro, e dobraram aquela esquina – disse apontando com a mão.
O policial olhando para os colegas, falou:
– Já temos muitas testemunhas para depor. Este guri não viu nada.
O grupo militar se dirigiu à viatura que o trouxera desaparecendo rumo à delegacia.
O menino, descalço e sem rumo, saiu à procura de um abrigo para passar a noite.
Lembrou-se de que na praça do chafariz havia uma gruta. Lá, já passara muitas noites junto com um grupo de meninos de rua.
Entrou devagar, procurou um lugar em volta de uma fogueira, que o grupo havia acendido. Sentou-se. De uma sacola que carregava a tiracolo, tirou alguns pães, partiu-os, e os distribuiu ao grupo. Um deles, que tinha ascendência sobre os demais, falou:
– Bem que poderia ser uma garrafa de pinga. A noite vai ser fria, possivelmente agitada. Roubaram o supermercado.
Uma menina, aparentando uns dez anos, afastou do nariz a garrafa de cola de sapateiro. Com a voz embargada, falou:
– Da última vez que aqueles guardas vieram aqui, nos bateram muito. Queriam informações. Como dizer uma coisa que não sabemos?
O líder do grupo, depois de acender um “baseado”, comentou:
– Eles sabem que nós ouvimos muitas coisas que acontecem por aí. Mas sabemos que é melhor, também mais seguro, permanecermos calados.
O dia amanheceu. No chafariz, o menino lavou o rosto. Dirigiu-se a um banco da praça. Retirou da sacola o último pedaço de pão duro e comeu-o como se fora a melhor iguaria que alguém pudesse saborear.
Caminhando, sempre sem pressa, chegou à feira. Por lá sempre conseguia eventualmente uma fruta desprezada ou outra coisa qualquer para comer.
De longe, reconheceu a silhueta de um homem. Aproximou-se. Um policial de cenho franzido, olhos negros, amendoados, com uma cicatriz no pescoço, ameaçava a dona de uma barraca:
– De tarde eu volto. Se não receber minha grana, mando te despejar deste ponto.
Já ia saindo quando percebeu a presença do menino. Enraivecido, segurou-o pela gola da camisa. Levantando do chão, esbravejou:
– Não és o pulguento que estavas ontem na porta do supermercado que foi assaltado? Que fazes aqui?
Tentando apoiar-se nas pontas dos pés, com dificuldade, respondeu:
– É verdade, eu estava lá. Hoje vim só arrumar umas frutas para comer.
Resmungando, o policial ameaçou:
– Da próxima vez que te encontrar, seja por acaso ou não, apanharás uns bofetes. És muito abelhudo.
Assim que o policial se afastou, a dona da banca, uma senhora de uns sessenta e poucos anos, aproximou-se do garoto, afagou-lhe os cabelos, ponderando:
– Aquele “brutamonte” te machucou, meu filho?
O menino, que via aquela senhora pela primeira vez, entendendo seu gesto de carinho ao chamá-lo de filho, disse-lhe:
– Vejo bondade no seu coração.
A velha senhora olhando-o, desabafou:
– Este policial vem me tomando dinheiro já faz um bom tempo. Está quase insuportável continuar aqui. Tenho orado para Deus me ajudar, mas parece que Ele ainda não me ouviu.
Por um momento o guri fez silêncio. Apenas olhou para aquele rosto suado marcado pelo trabalho pesado de muitos anos. Os cabelos, quase totalmente brancos e enrolados em uma trança parcialmente desfeita, revelavam seu cansaço. O carinho suave que recebera momentos antes pareceu quase impossível que tivesse partido daquelas mãos tão calejadas.
O menino sorriu, beijou-lhe a mão. Disse:
– Deus sempre responde às orações no tempo certo. Às vezes, manda um emissário, em outras, vem pessoalmente. Tenha certeza de que esse policial lhe importunou pela última vez.
– O que te dá certeza disso? – perguntou apressada a senhora.
– A Bíblia é a Palavra de Deus. Lá está escrito que Ele responde às orações de quem pede com fé. Está escrito também que é fiel à sua Palavra.
A senhora pensou por um momento. Continuou a conversa:
– Meu filho, acredito em Deus. Sei que Ele é justo, bondoso, sempre presente. Vou continuar orando, pedindo ajuda, mas independente de tudo vou tentar me aproximar cada vez mais d’Ele.
O menino foi se afastando até que desapareceu dos olhos tristes daquela mulher.
Já estava escurecendo. Na porta de um centro lotérico, um carro azul pára. Três homens encapuzados descem. Num relance, invadem a casa de jogo. Alguns estampidos de bala assustam os presentes. Os bandidos fogem o mais rápido possível.
Os seguranças do centro lotérico saem atirando em direção ao carro que arranca, e desgovernado, colide com um poste da rede elétrica da rua a algumas quadras dali. Três bandidos fogem. O motorista fica preso nas ferragens contorcidas do veículo.
Sangrando, ele tenta livrar-se do cinto de segurança que emperrou. Olha através da janela partida. Vê alguém se aproximando.
Antes que pudesse dizer alguma coisa, uma voz suave de criança se fez ouvir:
– Espere um momento, vou ajudá-lo.
Com esforço abriu a porta do carro. Com um pequeno canivete que usava para descascar frutas, cortou o cinto emperrado.
O homem saiu devagar. Afastou-se levando o menino pela mão. Mais adiante tomaram um táxi; depois de algum tempo, chegaram a uma casa isolada na periferia da cidade.
O garoto olhou para aquele homem de cenho franzido, olhos negros, amendoados, cicatriz no pescoço. Intrigado, perguntou:
– Por que o senhor é policial?
O homem que tentava com uma toalha limpar o sangue que lhe descia pela face retrucou:
– Queres na verdade saber é porque eu, sendo policial, faço assaltos como um bandido, não é?
– Não, ­ respondeu o menino ­ Quero saber mesmo por que quis ser policial.
O homem pensando um pouco respondeu:
– Eu te conto, mas só se me disseres por que me ajudaste. Sei que me reconheceste desde o supermercado. Viste que tomo dinheiro dos feirantes, além disso, ainda te prometi umas bofetadas. Tu és doido pulguento?
– Às vezes parece loucura seguir os mandamentos de Deus como, por exemplo, amar os inimigos ou dar a outra face quando se recebe uma bofetada.
O policial continuou:
– Também parece loucura andar mais uma milha com quem já nos obrigou a andar uma ou ainda dar a casaca para quem já nos tomou a túnica.
O menino sorrindo, continuou:
– Vejo que o senhor conhece alguma coisa da Bíblia.
Finalmente, o homem contou sua história:
“Meu pai era um policial honesto. Amava a farda mais que tudo. Aos domingos freqüentava uma igreja junto com minha mãe. Eu os acompanhava.”
“Ele trabalhava de noite fazendo uns biscates como segurança em festas para ganhar mais alguns trocados.”
“Minha mãe se matava de lavar roupas para fora tentando ajudar no orçamento familiar. Trabalharam até os últimos dias de suas vidas. Jurei que seria policial, que teria muito dinheiro.”
O garoto escutou atento, em silêncio.
Viu também uma ferida de bala próxima ao mamilo direito quando, com esforço, o policial tirou a blusa. Isso justificava sua respiração ofegante. Falou em seguida:
– O senhor precisa de um médico. Está sangrando, esse ferimento parece ruim.
O homem pegou um lenço, molhou com álcool, pôs sobre a ferida no peito. Resmungando, falou:
– Amanhã estarei bem. Se procurar médico, acabo na cadeia.
– O senhor gostava do seu pai? Ele lhe maltratava? Maltratava sua mãe?
O policial irritou-se com as perguntas feitas tão de repente.
– Estás doido, pulguento? Que perguntas mais idiotas essas? Meu pai era bondoso tanto comigo quanto com minha mãe. Sempre nos tratou bem.
– Por que o senhor não imitou seu pai, se gostava dele?
Algumas gotas de suor começaram a escorrer pela testa do policial.
A sede que sentiu, provocada pela perda de sangue, obrigou-o a andar até uma velha geladeira. Abriu-a, tirou uma lata de cerveja, e a goles largos, bebeu-a de uma só vez. Num acesso de raiva, amassou a lata com a mão, jogou-a no chão; dirigindo-se ao guri, falou:
  Eu imitei meu pai. Não sou policial?
– Desculpe, senhor – respondeu o guri –, a sua farda é de policial, mas seu coração é de bandido. O coração do seu pai era de bandido?
O homem quis andar em direção ao menino, mas resolveu sentar-se porque com o esforço o sangramento aumentara.
– Escuta aqui, moleque, vou acabar dando cabo de ti. Nunca matei ninguém, mas não será difícil começar.
O garoto insistiu:
– Só mais uma pergunta: O seu pai chegou a ver o senhor como um bandido?
O homem tossiu, ajeitou-se na poltrona, apertou mais o pano com álcool sobre o ferimento. Respondeu:
– Não, não viu. Nem minha mãe. Morreram acreditando que eu seria um bom policial. Oravam para que eu voltasse para a igreja, mas isso não conseguiram. Deus estava ocupado demais para dar ouvido a um velho policial e sua esposa.
– Deus tem o tempo certo para tudo. Ele ama a todos igualmente. Padeceu na cruz por todos nós. O seu sangue foi derramado por todos, sejam ricos, pobres, brancos, negros...
O homem interrompeu asperamente:
– Não sei por que estou aqui conversando contigo, perdendo meu tempo que já é pouco. Já vi muitos ferimentos à bala. Este pode me levar à sepultura.
– Já pensou que Deus pode ajudar o senhor?
O policial fez um esforço para sorrir.
– Só não matei, mas já roubei, extorqui, maltratei, trafiquei... Achas que esse teu Deus não viu isso?
– O nosso Deus vê tudo, se entristece quando percebe alguém se afastando do caminho que seu filho Jesus mostrou. Se houver arrependimento, Ele perdoa.
O policial ouviu atentamente o que o menino falava. Um suor pegajoso começou a ensopar-lhe o rosto. A respiração tornou-se mais difícil.
O menino, chegando mais perto, disse:
– O senhor está ficando muito fraco. Quer que eu peça ajuda?
– Nem pensar – respondeu resmungando –­ eu seria preso e “policia” na cadeia pena mais que todos.
– O senhor se lembra de algum pedido que um dia seu pai possa lhe ter feito?
– Queres ler minha mente, pulguento? Ele sempre dizia para eu confiar em Deus, para não me afastar dele, outras coisas assim...
– Não quer tentar pedir ajuda para Deus agora? O que o senhor perderia?
– Às vezes acho que meu pai tinha razão... Ele não tinha dinheiro, mas nunca lhe faltou o pão. Dizia-se feliz porque era servo de Deus. Se eu pudesse começar tudo de novo...
– O senhor conhece a história do “bom” ladrão?
O policial tornou a esboçar um sorriso. Falou:
– Dizem que a última coisa que roubou na vida foi o reino dos céus...
– Por que o senhor não faz o mesmo?
– Achas que estou morrendo, seu pulguento?
O menino sorriu. Sacudiu negativamente a cabeça. Ainda sorrindo, falou:
– O senhor pode ficar bom, é só confiar em Deus.
O homem se entristeceu muito. Falou suplicante:
– Falaste como meu pai. Acho que não sei mais orar...
– Fale com Deus como se O estivesse vendo aqui diante de nós. Na verdade, Ele está conosco.
Balbuciando devagar aquele homem ajoelhou-se, prostrou o rosto no chão e orou:
“Faz muito tempo que não converso contigo, meu Deus. Faz muito tempo... Acho que ainda era criança quando me ajoelhei para orar pela última vez. Olha para o que restou de mim... já não sei se podes me perdoar, mas se puderes, perdoa-me. Não peço pela minha vida, mas pela minha alma”.
O policial perdeu os sentidos. Com muito esforço o menino conseguiu ajeitá-lo no chão. Saiu rapidamente em busca de socorro.
Anos depois, andando pelas ruas da cidade, o mesmo menino, descalço, sem rumo, entrou em uma igreja.
Um pastor, cheio de alegria, pregava empolgado a Palavra de Deus. O garoto aproximou-se, olhou para aquele homem. Examinou-o cuidadosamente. Pôde contemplar um cenho descontraído, olhos negros amendoados, e uma cicatriz no pescoço que o colarinho clerical não conseguia esconder. Aquela era uma fisionomia familiar, porém agora muito agradável.
Pastor Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

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