domingo, 8 de dezembro de 2013

O Prepotente


Capítulo 6
O Prepotente

O menino caminhava pelas ruas da cidade, passo a passo, bem devagar. Seus pés, quase congelados, doíam apoiados em uma velha e rota chinela de couro. Um vento frio aumentava-lhe o mal-estar causado pela fome. Anoitecia.
O pequeno movimento das ruas se justificava pela garoa fina e esfumaçada que fluía no ar, iluminada tão-somente por lâmpadas dos postes públicos.
Um grupo de pessoas cercava o corpo de um jovem, vítima de um atropelamento por carro em uma das avenidas mais importantes da cidade. O menino passou por entre os curiosos... aproximou-se do corpo. Acocorou-se, por um momento, ao seu lado.
Ali estava um rapaz aparentando uns dezoito anos. Os cabelos negros manchados de sangue não conseguiam cobrir o grande ferimento em sua cabeça. Os olhos entreabertos revelavam uma expressão de súplica. O menino tocou-lhe suavemente a testa e balbuciou algumas palavras ininteligíveis. No mesmo instante, alguém entre os presentes o repreendeu asperamente.
Ele levantou-se, seguiu em direção a um rico e imponente hospital do outro lado da rua. As portas de vidro iluminadas de baixo para cima aumentavam a impressão de luxo, de grandeza, daquele local. Aproximou-se do porteiro que se protegia do tempo pelo lado de dentro da porta. Hesitante, falou:
– Senhor, ali do outro lado da rua, um rapaz precisa de um médico. Está muito ferido, pode chamar algum?
O homem, olhando para a criança, desdenhou:
– É teu parente o rapaz do acidente? 
– Não, não é não senhor – respondeu o menino.
A garoa fina continuava a cair aumentando o frio que o vento acariciava. Seus cabelos negros, ralos, estavam tão ensopados quanto a velha blusa de meia que se colara ao seu corpo.
O porteiro, através da porta entreaberta continuou:
– Garoto, acho bom ires andando daqui. Este é um hospital particular. É só para quem tem grana, muita grana. Não temos convênios com nenhuma instituição de caridade. Cai fora!
O porteiro ainda falava quando se aproximou um homem vestindo calça e jaleco brancos. Ouvira parte do diálogo. Perguntou:
– Que é que tu queres mesmo garoto? Sou médico.
Com paciência explicou ao doutor:
– Senhor, do outro lado da rua um rapaz foi atropelado por um carro. Está jogado no asfalto. Os ferimentos são muitos, ele precisa urgente de atendimento médico. Talvez tenha pouco tempo de vida. O senhor talvez possa salvá-lo.
O médico, esboçando um sorriso irônico, comentou:
– Achas que vou sair na chuva, para cuidar de alguém que não conheço, que talvez não vá nem me pagar? Sou dono deste hospital. Não o construí fazendo caridade. Olha para mim, vê se sou homem de perder tempo ou dinheiro.
O garoto olhou verdadeiramente para aquele homem. Viu nos seus cabelos lisos e negros, bem arrumados, o brilho artificial de algum cosmético importado. Na face, um sorriso zombeteiro cristalizado nos olhos claros e frios dos presunçosos. Envolvendo seu pescoço, uma grossa corrente de ouro, sustentando um crucifixo cravejado de brilhantes, repousava sobre o peito. Um relógio de ouro maciço pesava em seu pulso esquerdo. No coração, não viu solidariedade, não viu amor... a alma estava vazia.
O garoto afastou-se. Em um ponto de táxi próximo, com ajuda de um motorista, chamou uma ambulância.
De volta ao local do acidente, ao lado do rapaz caído, esperou o socorro que não tardou em chegar. A equipe de resgate o transportou até o Pronto Socorro Público. 
Os médicos plantonistas decidiram pela cirurgia. O sangramento era deveras abundante. Havia um traumatismo craniencefálico. Quatro horas depois o paciente foi levado ao CTI.
Naquele hospital imponente, de portas de vidro iluminadas de baixo para cima, um celular tocou insistentemente. Eram três horas da manhã. Um homem atende:
– Alô!
– É o sr. José Reis?
– É sim; sou o Doutor José Reis – respondeu de maneira arrogante. Diga!
A voz do outro lado da linha, hesitante, prosseguiu:
– Doutor, aqui é do Pronto Socorro. O senhor é o pai de Evaldo Reis?
– Sou sim... por quê?
– Ele foi atropelado quase em frente ao Hospital São Lucas. Foi operado. Está no CTI.
Uma pausa angustiante interrompeu o diálogo, porém logo o Dr. José Reis insistiu:
– Como foi isso? Quando foi o acidente?
– Aconteceu logo ao anoitecer. Não sei como foi, mas o garoto que providenciou a ambulância está aqui, talvez saiba lhe dizer alguma coisa.
Outra vez o Dr. José Reis prendeu a respiração sem acreditar no que estava ouvindo. Falou angustiado.
Estou indo...Estou indo!
Em pouco tempo entrou no Pronto Socorro, quase que correndo. Dirigiu-se diretamente ao CTI. Identificou-se como médico. Pôde ficar ao lado do filho.
Observou, inerte, o vai-e-vem do aparelho que mantinha o rapaz respirando. Uma bandagem na cabeça cobria-lhe parcialmente o rosto. Por alguns minutos ficou em silêncio, com a garganta seca. Não teve coragem para derramar uma lágrima sequer. Teve certeza de que havia negado socorro para seu próprio filho, quando um menino, desconhecido, tentava socorrê-lo.
Um outro médico aproximou-se, colocou as mãos em seus ombros e falou, tentando consolar:
– Sinto muito, amigo, sinto muito. Não adianta esconder a gravidade do caso porque, como médico, você bem sabe o que pode acontecer. Se ele tivesse sido atendido mais rápido, talvez tivesse alguma chance. Agora... 
Aquelas palavras, em vez de consolo, cravaram em seu coração o mais dorido dos sofrimentos. Seu rosto pálido recebeu de sua testa algumas gotas de angústia em forma de suor.
Por uns momentos ainda ficou ouvindo os “bips” cadenciados que marcavam o compasso dos batimentos cardíacos do rapaz. Na consciência, ouvia o eco das palavras que dirigiu a um pequeno mendigo na porta de seu hospital: “Achas que vou sair na chuva, para cuidar de alguém que não conheço, que não vai nem me pagar?”
(a conclusão será publicada na próxima semana)
Pr. Antonio Jorge

ajorgefs@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário