Respirei
aliviado após mais um dia de serviço. Troquei de roupa no vestiário do bloco
cirúrgico. Eram 18:45h e eu estava de folga por toda a noite. Naquela
sexta-feira queria aproveitar e cumprir a promessa que fizera à minha mulher:
sairmos para jantar.
O celular tocou. Era ela. Da mesma
forma de sempre inquiriu:
– Oi amor! Onde estás? Vais demorar
muito?
Honestamente, é sempre um prazer falar
com minha esposa mesmo que seja pelo telefone. Feliz, respondi prontamente:
– Oi amor! Não demoro nada. Estou
saindo. Chegando em casa tomo um banho e sairemos em seguida. Já desististe de
jantar comigo?
O sorriso do outro lado da linha
revelou um certo ar de ironia e incredulidade. Nessa mesma semana esse jantar
já havia sido adiado pelo menos por duas vezes, e sempre pelo mesmo motivo:
trabalho.
Entrei no carro, apertei o sinto de
segurança no peito e, com muito cuidado iniciei o caminho de volta para casa.
Não gostaria que nada atrapalhasse meus planos. Queria chegar logo. A música
evangélica que fluía do rádio ajudava a aliviar o estresse do dia.
Já quase chegando, o celular toca.
Instintivamente, atendo. Não era a voz que eu gostaria de ouvir.
– Doutor, será que dá para o senhor vir
aqui no hospital, agora? É um caso grave e urgente.
Era a telefonista de um hospital
infantil. Deu-me o nome de um cirurgião e pediu-me que fizesse contato com ele.
Quando entrei em casa sem o sorriso de
quem vai sair para se divertir, minha esposa perguntou:
–
Que foi desta
vez?
– Uma emergência, – respondi quase sem jeito. – O
colega anestesiologista de plantão está trabalhando e tem uma criança passando
mal. Já falei com o cirurgião. Ele adiantou que o caso é muito grave. Não pode
esperar. Vou ter que voltar para o hospital agora mesmo. Ora por mim.
Tomei um copo de suco, dei-lhe um beijo, e, com um
pedido de desculpas, saí apressado.
Antes de entrar no bloco cirúrgico fui à enfermaria
ver o pequeno paciente que seria operado. Como profissional, acostumado a
trabalhar com crianças, e algumas bem graves, confesso que fiquei apreensivo.
Como ser humano não pude evitar que meu coração fosse visitado por um
sentimento de revolta, de angústia e incredulidade. Como aquela criança pôde
chegar àquele estado?
Aproximei-me para um exame mais
detalhado. Os cabelos muito negros e abundantes emolduravam um rostinho moreno,
descorado, caquético. Os olhos também negros e sem brilho, afundados naquela
face triste, procuravam, agitados, algo ou por alguém como que implorando
silenciosamente por socorro. Uma blusa muito fina e pequena não conseguia
esconder um abdome volumoso e distendido exibindo as consequências de uma
paralisia intestinal que já se arrastava por alguns dias. As pernas magras e
muito pequenas, entreabertas, deixavam à mostra uma porção considerável de intestino
apodrecido que lhe saía pelo reto.
Era quase impossível de acreditar que
um menino de apenas sete meses de idade não houvesse morrido antes de chegar
àquele estado.
Informei à mãe que seria muito difícil
que aquela criança voltasse com vida do bloco cirúrgico.
Com o maior dos cuidados iniciei a
anestesia. O sangramento foi maior do que o esperado quando o bisturi expôs a
cavidade abdominal do pequeno paciente. Um suor gelado, sorrateiramente,
insistia em molhar-me a face. O compasso acelerado do meu coração contrastava
com os fracos batimentos do da criança. O sangue ministrado por uma veia
dissecada parecia esgotar-se rapidamente.
Apesar de todo o esforço, senti que
aquela criança estava ficando cada vez mais fraca. Suas mãos começaram a
cianosar, evidenciando que a circulação periférica estava cada vez mais
comprometida. Como médico, fiz toda a medicação que o momento exigia. Como
servo de Deus, coloquei-me diante dele em oração:
“Senhor, entrego esta criança em tuas
mãos. Faz a tua vontade. Sei que és Senhor da vida e da morte e só tu podes
mantê-la viva. Eu te peço, Senhor, por esta vida para que mais tarde ela possa
também Te reconhecer como Deus único e verdadeiro e proclame a glória do Teu
santo nome.”
Naquele instante, senti que o ritmo do
meu próprio coração voltou ao normal e que minha testa deixou de fornecer suor
gelado ao meu rosto. Senti a tranquilidade da presença de Deus.
Creio sinceramente no poder da oração.
Creio firmemente que a palavra de Deus é imutável e fiel. Está escrito: “pedi e dar-se-vos-á...”
A cirurgia arrastou-se por quase três horas. Ao término,
quando retirei a sonda endotraqueal por onde o anestésico era ministrado,
aquela criança voltou a respirar normalmente. Aqueles olhos negros e vigilantes
abriram-se novamente, mas não como a procurar algo ou por alguém. É bem
provável que eles tenham encontrado, durante o sono anestésico, as mãos e a
guarida do Senhor nosso Deus.
Com a cirurgia foi removida boa parte
do intestino grosso do pequeno paciente, mas tenho certeza de que todos os que
viram e que ainda o veem vivo e esperto, vão poder falar e comprovar que o Deus
ao qual servimos com amor, tem muito mais poder e amor para nos dar.
Pr.
Antonio Jorge
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