Duas
horas da manhã. Termina mais um parto cesariano. O cansaço inevitável aos
poucos toma conta de mim. Tento resistir. Um sorriso rápido de contentamento
alentou-me quando o obstetra referiu que não havia mais nenhuma cirurgia programada.
Desci a rampa que conduz ao quarto de repouso dos médicos.
O ruído do ar condicionado insinua-se
como cantiga de ninar. Em poucos minutos o sono envolveu-me junto com a
escuridão do ambiente.
Algum tempo depois a porta do quarto
rangeu. Acordo e permaneço imóvel. O vulto de uma auxiliar de enfermagem,
procurando orientar-se entre as várias camas enfileiradas, caminha em minha
direção.
– Doutor... doutor... –, falou
sussurrando tentando abafar a voz para não acordar os outros médicos –, estão chamando
no bloco cirúrgico!
Tentando controlar o sono e a fadiga,
abro lentamente os olhos no afã de raciocinar. Uma réstia de luz oportuna
invade o recinto através da porta deixada entreaberta. Na penumbra, consigo
distinguir os ponteiros do relógio de pulso marcando duas e trinta.
Sentei-me devagar na cama. Tateando com
os pés, encontro os sapatos no chão. Calço-os desajeitadamente. A mesma rampa
que me conduziu ao quarto trinta minutos atrás pareceu-me mais longa e sinuosa
como caminho de volta.
No bloco cirúrgico, o obstetra aproximou-se de mim, e
tentando justificar o chamado, falou:
– Esta paciente chegou agora mesmo, é
necessário intervir.
Na mesa obstétrica estava deitada uma
moça aparentando de quinze para dezesseis anos. A cabeça, muito pequena,
caracterizava uma microcefalia acentuada. Os cabelos longos, negros e grossos
que brotavam desde o meio da testa, davam a impressão de um rosto ainda menor.
As mãos recurvadas sobre os punhos escondiam dedos retorcidos e delimitados por
longas unhas encurvadas e sujas. As pernas, atrofiadas e mal formadas,
mantinham-se retesadas e espásticas sobre seu abdome.
Num relance, percebi naquela face
maltratada, um olhar angustiado, sofrido e alienado de qualquer parâmetro. O
sangue que fluía com abundância de sua genitália, impunha uma intervenção
médica imediata.
O cirurgião olhou-me nos olhos e
relatou o fato:
– Essa paciente tem dezesseis anos, é
muda, surda e deficiente mental. Alguém, provavelmente um parente próximo, a
estuprou. A família conseguiu na justiça que ela fizesse um aborto
“legalmente”, só que o processo demorou para ser julgado. Ontem, alguém
administrou-lhe uma droga abortiva e hoje expeliu um feto de seis meses que
nasceu vivo e morreu horas após. Esse sangramento é devido a restos de placenta
que ficaram retidos em seu útero. Precisamos coibir essa hemorragia.
Diante da narrativa o cansaço e o sono
sumiram. Deram lugar a uma imensa tristeza que me fez refletir e buscar,
conversando com Deus, um alento. Orei:
“Senhor, como pode o homem ser tão
mesquinho, tão pequeno, tão miserável? Como pode o homem desrespeitar desse
modo seu semelhante? O que tem no coração um ser que violenta sexualmente
uma pessoa como esta? Isto é obra do próprio homem?
Não sei, na verdade, quem foi mais covarde! O criminoso que
a estuprou? O juiz que determinou o aborto legal? A pessoa que ministrou a
droga abortiva? De uma coisa estou bem certo: quem menos teve culpa neste
episódio pagou com a própria vida e foi a criança abortada!”
Este fato fez-me lembrar da história de
um homem que viveu entre nós há muito tempo, a quem nunca se pode imputar
qualquer culpa e, mesmo assim foi condenado à morte. Ele curou cegos, coxos,
paralíticos, limpou leprosos, e quando esbofeteado, ensinou-nos a oferecer a
outra face; resgatou-nos do pecado e, erguido em um madeiro depois de insultado
e humilhado, bradou a Deus , seu pai, pedindo perdão para seus algozes.
A criança abortada pagou com a vida a covardia e crueldade
de alguns homens. O Filho de Deus pagou com a vida pelos pecados de todos os
homens e com isso nos resgatou e nos deu a possibilidade da salvação. O Filho
de Deus morreu por amor infinito a nós. Como Ele se sente quando o ofendemos?
Quando o desprezamos? Será que deste modo, não o estamos condenando e
rejeitando também, da mesma forma como foi condenada e rejeitada aquela criança
?
Pr. Antonio Jorge
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