segunda-feira, 1 de abril de 2013

Conversando com Deus



             Duas horas da manhã. Termina mais um parto cesariano. O cansaço inevitável aos poucos toma conta de mim. Tento resistir. Um sorriso rápido de contentamento alentou-me quando o obstetra referiu que não havia mais nenhuma cirurgia programada. Desci a rampa que conduz ao quarto de repouso dos médicos.
         O ruído do ar condicionado insinua-se como cantiga de ninar. Em poucos minutos o sono envolveu-me junto com a escuridão do ambiente.
         Algum tempo depois a porta do quarto rangeu. Acordo e permaneço imóvel. O vulto de uma auxiliar de enfermagem, procurando orientar-se entre as várias camas enfileiradas, caminha em minha direção.
         – Doutor... doutor... –, falou sussurrando tentando abafar a voz para não acordar os outros médicos –, estão chamando no bloco cirúrgico!
         Tentando controlar o sono e a fadiga, abro lentamente os olhos no afã de raciocinar. Uma réstia de luz oportuna invade o recinto através da porta deixada entreaberta. Na penumbra, consigo distinguir os ponteiros do relógio de pulso marcando duas e trinta.
         Sentei-me devagar na cama. Tateando com os pés, encontro os sapatos no chão. Calço-os desajeitadamente. A mesma rampa que me conduziu ao quarto trinta minutos atrás pareceu-me mais longa e sinuosa como caminho de volta.
         No bloco cirúrgico, o obstetra aproximou-se de mim, e tentando justificar o chamado, falou:
         – Esta paciente chegou agora mesmo, é necessário intervir.
         Na mesa obstétrica estava deitada uma moça aparentando de quinze para dezesseis anos. A cabeça, muito pequena, caracterizava uma microcefalia acentuada. Os cabelos longos, negros e grossos que brotavam desde o meio da testa, davam a impressão de um rosto ainda menor. As mãos recurvadas sobre os punhos escondiam dedos retorcidos e delimitados por longas unhas encurvadas e sujas. As pernas, atrofiadas e mal formadas, mantinham-se retesadas e espásticas sobre seu abdome.
         Num relance, percebi naquela face maltratada, um olhar angustiado, sofrido e alienado de qualquer parâmetro. O sangue que fluía com abundância de sua genitália, impunha uma intervenção médica imediata.
             O cirurgião olhou-me nos olhos e relatou o fato:
         – Essa paciente tem dezesseis anos, é muda, surda e deficiente mental. Alguém, provavelmente um parente próximo, a estuprou. A família conseguiu na justiça que ela fizesse um aborto “legalmente”, só que o processo demorou para ser julgado. Ontem, alguém administrou-lhe uma droga abortiva e hoje expeliu um feto de seis meses que nasceu vivo e morreu horas após. Esse sangramento é devido a restos de placenta que ficaram retidos em seu útero. Precisamos coibir essa hemorragia.
         Diante da narrativa o cansaço e o sono sumiram. Deram lugar a uma imensa tristeza que me fez refletir e buscar, conversando com Deus, um alento. Orei:
         “Senhor, como pode o homem ser tão mesquinho, tão pequeno, tão miserável? Como pode o homem desrespeitar desse modo seu semelhante? O que tem no coração um ser que violenta sexualmente uma pessoa como esta? Isto é obra do próprio homem?
         Não sei, na verdade, quem foi mais covarde! O criminoso que a estuprou? O juiz que determinou o aborto legal? A pessoa que ministrou a droga abortiva? De uma coisa estou bem certo: quem menos teve culpa neste episódio pagou com a própria vida e foi a criança abortada!”
         Este fato fez-me lembrar da história de um homem que viveu entre nós há muito tempo, a quem nunca se pode imputar qualquer culpa e, mesmo assim foi condenado à morte. Ele curou cegos, coxos, paralíticos, limpou leprosos, e quando esbofeteado, ensinou-nos a oferecer a outra face; resgatou-nos do pecado e, erguido em um madeiro depois de insultado e humilhado, bradou a Deus , seu pai, pedindo perdão para seus algozes.
         A criança abortada pagou com a vida a covardia e crueldade de alguns homens. O Filho de Deus pagou com a vida pelos pecados de todos os homens e com isso nos resgatou e nos deu a possibilidade da salvação. O Filho de Deus morreu por amor infinito a nós. Como Ele se sente quando o ofendemos? Quando o desprezamos? Será que deste modo, não o estamos condenando e rejeitando também, da mesma forma como foi condenada e rejeitada aquela criança ?
                                                                                                                      Pr. Antonio Jorge

Nenhum comentário:

Postar um comentário